domingo, 31 de janeiro de 2010

Você é um homem mau, Sr. Gum! Andy Stanton


Sei. Posso até estar “viajando”, mas acho que há algo meio que “misterioso” envolvendo a relação “leitor e livro”. Sabe aquela coisa que parece que o livro está gritando? “Ei, ei! Estou aqui. Leve-me, por favor!”. Tudo bem, tudo bem. Menos! Menos! Mas de uma coisa estou convencido: o livro deve e precisa chamar a atenção do leitor. Nem todos os leitores são como eu, que leio até livro em papel jornal, livros feios e velhos, cheirando a mofo de sebo. Os livros precisam ser bem encadernados, com várias cores e todos os recursos disponíveis para despertar o desejo da leitura, principalmente dos jovens, pois os livros para esta faixa etária estão competindo (desleal e injustamente) com a Internet, os “video-games”, a televisão (Argh!).


Abro exceção aqui para falar de um livro de autor estrangeiro. Refiro-me ao livro “Você é um homem mau, Sr. Gum!”, do britânico Andy Stanton. Um livro caracterizado como Literatura Infanto-juvenil. Primeiramente, quero falar de algo muito importante: o acabamento do livro. Nota onze. Editado no Brasil pela Editora Record, no selo “Galera Record”. Com uma capa em relevo e uma bela ilustração de David Trazzyman, o livro não passa despercebido pelo visitante de livraria mais desatento. E foi assim que aconteceu comigo, pois periodicamente faço visitas a livrarias e gosto desse contato direto com o livro. Não consegui evitar e tomei o livro nas mãos e passei a folheá-lo. Não pude deixá-lo parado na prateleira e terminei por comprá-lo, numa espécie de “auto-presente” de Natal (ainda bem, pois foi o único presente que ganhei!).


O conteúdo é bom e merece a qualidade da produção. Em “Você é um homem mau, Sr. Gum!”, Andy Stanton traz ao público brasileiro um pouco do humor britânico (às vezes meio bobo demais e sem graça, admito, mas aqui não é o caso), cheio de aventura com passagens completamente “non-sense”, mas que torna a leitura divertida e prazerosa. Os tipos são grandes e o texto é distribuído de forma reduzida pelas páginas, acompanhado sempre pelas belas ilustrações de Trazzyman, o que faz com que a leitura renda e, quando se vê, foram-se as 180 páginas. Parece um livro longo para infanto-juvenil, mas não. Quando terminei a leitura, fiquei com aquele gostinho de “quero-mais”. Traz a história de um homem ranzinza, mal humorado, porcalhão, e que “é um horror completo, odeia crianças, animais, diversão e milho verde”, mas que é capaz de “manter seu jardim tão arrumado, tão jeitoso, que era o mais bonito, o mais verde, o mais florido jardim de toda Lamonic Biibber” (p.14). A “trama” é simples, mas não é ingênua, abordando, de forma discreta e divertida, um pouco de “moral-da-história”, “non-sense”, “infantilidades”, com fortes doses de humor. Acho que dificilmente o leitor ficará insensível ao concluir a leitura.


Os personagens merecem um destaque especial. Além do Sr. Gum, há muitos outros, como Jake, o cão; uma garotinha chamada Polly, que tem um nome quilométrico; uma menininha chamada Pedro (?); Martin Lavanderia; Jonathan Baleia, “o homem mais gordo da cidade”; e Sexta-Feira O’Leary, “um bom amigo, fantástico mesmo, e que conhecia os mistérios do tempo e do espaço, e coisas deste tipo”.


“Sexta-Feira O’Leary gritava A VERDADE É UM MERENGUE DE LIMÃO!, no final das suas frases. Seja como for, um pouco antes naquele dia, Sexta-Feira estava sentado na sala da frente, tocando piano. Tocava uma canção que ele mesmo tinha composto chamada “Tocava uma canção que ele mesmo tinha composto”, sobre como tocava uma canção que ele mesmo tinha composto. (Ele também tinha composto uma canção chamada “Mas ele não estava tocando aquela no momento”, mas ele não estava tocando aquela no momento.)” (p.96/97);


“Subitamente, tudo ficou muito tranqüilo, como a parte triste de uma história. Nem os pássaros cantavam naquela hora infeliz, nenhuma brisa soprava. Pela primeira vez, até mesmo a fada raivosa estava em silêncio. O único barulho era o da respiração de Jake, para dentro e para fora, cada vez mais fraca.” (p.148).


O livro “Você é um homem mau, Sr. Gum!”, de Andy Stanton foi publicado no Brasil em 2008, pela Editora Record, Rio de Janeiro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Contos Reunidos. Murilo Rubião

Ávido por novidade? Só que não é tão novo assim. Disposto a saborear a obra completa de um escritor numa única brochura? Não, calma. Nada de 1000 páginas, em tipo arial 8 ou menor, folhas de seda como as de bíblia, onde urge uma lupa. Falo de Murilo Rubião, em “Contos Reunidos”. Rubião é um escritor quase que esquecido pela Imprensa Literária. Trata-se de mais uma grande injustiça para quem, ao lado do também grande José J. Veiga, tornou-se referencial do gênero fantástico na Literatura Brasileira.


O mineiro de Carmo de Minas, MG, Murilo Eugênio Rubião é de 1916 e estreou tardiamente, aos 31 anos, em 1947, com “O ex-mágico”. Em 1953, “A estrela vermelha”; depois “Os dragões e outros contos”, de 1965; “O pirotécnico Zacarias”, de 1974; “O convidado”, também de 1974; “A casa do girassol vermelho”, de 1978; e “O homem do boné cinzento e outra histórias”, de 1990. Rubião faleceu em 16/09/1991. Este volume póstumo, de 2005, “Contos Reunidos” traz todos os contos do autor de forma definitiva, em última versão. Tem até um conto inédito chamado “A diáspora”. Falo “em forma definitiva ou última versão”, porque Murilo Rubião tinha um estranho hábito: o de estar sempre revisando e reescrevendo seus contos, mesmo depois de publicados. Então a releitura dos seus contos é sempre uma grande e agradável surpresa.


A temática dos contos de Rubião não é repetitiva, mas traz uma constância: a abordagem do absurdo, do inconcebível, das coisas inexplicáveis, com características até surreais, dando uma sensação de estranhamento nas pessoas. Este recurso estilístico se popularizou com Franz Kafka, depois se repetiu com sucesso, principalmente, através dos argentinos Julio Cortázar e Jorge Luís Borges. No Brasil, Rubião e José J. Veiga são os principais expoentes do gênero, mas com um quê a mais, pois trazem aquela peculiaridade só nossa, característica dos bons escritores nacionais. Rubião, ao ler a crítica a respeito do seu primeiro livro, estranhou a caracterização da sua obra por uma suposta “influência kafkiana”, no que alegou que jamais havia lido Kafka antes da publicação. Sob o artifício do aparente absurdo sem propósito, do ilógico, do “non sense”, o escritor traz à tona o absurdo do cotidiano da nossa realidade, a qual deve e precisa ser revista e questionada, sob pena da alienação e do conformismo. Pois, se ainda não perceberam, a rotina de dias tão iguais, que só conseguimos distingui-los pelos calendários ou pela programação da tevê, se não nos torna meio autômatos, cega-nos justamente naquilo que não queremos enxergar.


“Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior. Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores. Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude. Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota.(...) Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos. Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.” (“O ex-mágico da Taberna Minhota” – 1947)


“A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso, com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de homens.” (“O pirotécnico Zacarias” – 1974)


“Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava. Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente.(...) Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à amurada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria. Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.” (“Bárbara”, p.33)


“Alguns dias transcorridos, perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo. Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.” (“Teleco, o coelhinho”, p.143)


Bem. Sei que meu esforço aqui será em vão. Para saber e tirar suas próprias conclusões sobre a produção impar do magnífico Murilo Rubião, só lendo mesmo. O livro está aí. “Contos Reunidos”, apenas 276 páginas, com letras normais, papel padrão. Editado pela Editora Ática, São Paulo, 2005.


Mais informações sobre o autor, acesse:

http://www.murilorubiao.com.br/



segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Pequeno gafanhoto biografado. Valdemir Klamt


Livro de um autor brilhante, dono de um talento incomum, que, para começar, sofre “de constantes intoxicações de palavras./ Pimenta, pitanga e prego são as mais vene
nosas”(p.30) e que, discretamente, “Implor(a) não ser.” (p.31). Brincar de deus é bom e divertido (e eu gosto - do brinquedo e do resultado!). Quem escreve ou apenas aprecia a boa literatura sabe do que falo. Criar personagens, histórias, enredos, ser o “Senhor” da vida e da morte das próprias criaturas é algo fascinante e vem seduzindo muita gente há séculos. Só experimentando mesmo um pouco desse entorpecente ato de escrever para saber exatamente do que digo. Claro que não basta dominar o idioma, é preciso mais, muito mais. A literatura não se resume à sintaxe, à semântica, decoreba de dicionário. Há até que se deixar levar (quase sempre) pela própria obra (vide a teoria do “Inconsciente do Texto” – contestável, sei, mas!). E, em “Pequeno gafanhoto biografado”, Valdemir Klamt põe em prática sua experiência, sua formação pessoal e acadêmica, numa aventura (odisséia, talvez) impar, inédita, levando o leitor a vivenciar o que parece ser inimaginável. Em seus versos de “quase-prosa”, Valdemir Klamt seduz, hipnotiza e reduz o leitor, para que possamos ver o mundo sob outro prisma. Valdemir Klamt é um sobrevivente (mais um, ainda bem!) da castradora teoria daqueles que se sujeitam à formação acadêmica. E ainda há quem pense que a formação em Letras é necessária ao ofício de escrever. Ledo engano!


“Pequeno gafanhoto biografado”, de Valdemir Klamt vem com “Pretexto”, em substituição ao tradicional prefácio, justificando a obra com uma história de um ataque de uma praga de gafanhotos a destruir uma plantação de aipim. Depois o livro é dividido em três partes: “Investigações”, “Desejo de ser gafanhoto” e “Fita métrica”. O resultado é um livro meio emblemático, quase um livro de divagações (ou reflexões) filosóficas. Alcides Buss, teorizando nas orelhas, faz uma interpretação mais técnica da obra e diz: “... uma poética de indagações. Mais do que uma incursão kafkiana, esta imagem nos encaminha, pouco a pouco, par uma compreensão inusitada dos avessos da existência. As imagens, ao contrário de se perderem nos labirintos da insignificância, vão descerrando os anéis que os unem, ou os separam, nas entrelinhas da vida (e da morte).”


A poética de Valdemir Klamt, neste livro, como o próprio título da obra, traz, através do “gafanhoto”, frequentes recorrências, evitando que o leitor se perca no caminho e, ao mesmo tempo, não o deixa esquecer do tempo para reflexão:

“Nascer pequeno é diferente/ Pior é viver pequeno./ Há quem morre miúdo.”(p.15);

“Toda noite me desfaço de mim/ Ponho meu corpo num cabide./ Enxáguo a alma de gafanhoto.”(p.16);

“Eu me tornei mais gafanhoto depois/ que passei a criar sacis-pererês./ Sacis alimentam-se de incorpóreo/ e de pobres amores,” (p.19);

“Castiguem os homens para não ousarem./ Façam caber na forma quem possui gordura.”(p.29);

“Passarei férias no manicômio dos grilos./ Descobri que minha perna torta é um defeito./ Imaginem se descobrem que tenho desvio de personalidade!” (p.30);

“A coisa mais azul é um corpo em queda livre do décimo nono andar.” (p.37);

“Sou um ser inibido, retraído e calculista./ Desconheço como cheguei à serenidade,/ sequer sei a maneira como se atinge a idade/ que tenho e por quê o terror da velhice.” (p.39).


E há mais, muito mais poesia de qualidade em “Pequeno gafanhoto biografado”. Lembro que meu contato com o livro foi, primeiramente, pelo título, no catálogo da Editora Escrituras, quando o ganhei para escolher livros para resenhar para o site Leia Livro (hoje extinto). E, hoje, depois da terceira leitura, posso afirmar categoricamente que Valdemir Klamt é mais um integrante da nova poética brasileira contemporânea. Santa Catarina agora tem um representante de peso. Junta-se aos gaúchos Carpinejar e Paulo Scott, e aos cariocas (ou fluminenses) Zeh Gustavo e Gustavo Jobim (Zé Urbano).


“Valdemir Klamt nasceu em 1976 e formou-se em Letras pela UFSC. Atualmente mora em Florianópolis/SC e é pós-graduado em Teoria da Literatura pela mesma universidade.”


O livro “Pequeno gafanhoto biografado” é de 2002, editado por Escrituras, São Paulo. Tem ilustrações de Márcia Cardeal, que também produziu a capa.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Os cem menores contos brasileiros do século. Organizado por Marcelino Freire.


Um experimento literário. Vale pela arte de escrever (o que for). Inspirados pelo famoso microconto ou miniconto (a distinção é tão sutil que confunde, mas há quem distinga com precisão) do escritor hondurenho, Augusto Monterroso (Bonilla)*, que nasceu em 21/12/1921 em Tegucigalpa, falecendo em 07/02/2003:

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”

Um “microconto” com 37 letras que se tornou mundialmente famoso. Foi inspirado nele que o escritor Marcelino Freire (Balé Ralé, Contos Negreiros) resolveu desafiar cem escritores brasileiros para escreverem “histórias” inéditas com até 50 “LETRAS” e não “palavras”. Uma tarefa difícil e que requer um poder de concisão muito apurado. Nos “textos” publicados pelos cem (103) escritores há de tudo um pouco. Doidice sem tamanho, coisa “sem-pé-nem-cabeça”, absurdos despropositais, literatura “conceitual”, “bobiças” para rir um pouco. Não bastasse o tamanho diminuto do livro (13x11cm), que ficou parecido com aquelas pequenas bíblias encontradas nas gavetas de criado-mudo de cama de hotel de terceira. Salvam o livro (ainda bem!) os “textos” de alguns escritores que se propuseram a dar valor ao que levaria seus nomes:

“Faço amizade comigo para tomar uma cerveja.” (in “Fossa”, de Fabrício Carpinejar, p.27);

“Pronto nos olhos, o pranto só espera a notícia.” (in “Vigília”, de João Anzanello Carrascoza, p. 38);

“Banheiro na chamada do vôo. Cálculo renal salta. Ele guarda.” (in “Aeroporto”, de João Gilberto Noll, p. 40);

“- Cabeça?/ - É. / - De quem? / - Não sei. O dono não tá junto.” (in “Disque-denúncia”, de Marçal Aquino, p. 55);

“- Se atrasa, preocupa. Quando chega, incomoda. / - Menstruação? / - Meu marido.” (in “Chico”, de Nelson de Oliveira, p.73);

“Madrugada. / Ele as esmaga com os pés, dá-lhes chance de ferroar.” (sem título, Paulo Scott, p. 77).

Um destaque especial para o cineasta e escritor gaúcho Jorge Furtado:

“- Eu não te amo mais./ – O quê? Fale mais alto, a ligação está horrível!” (sem título, p. 43)

Marcelino Freire, o organizador, é salvo pelo título:

“Ajoelhe, meu filho. E reze.” (in “Pedofilia”, p.56)

Mas o que realmente salva o livro é o texto de Sérgio Roveri:

“- É espinha?/ - Cravo. / - Posso apertar?/ - Não!/ (Ploc)/ - Ai, que nojo.” (p. 93)

Se despertei curiosidade, o livro “Os cem menores contos brasileiros do século” é de 2004, publicado pela Ateliê Editorial, com 104 páginas, paguei R$35,00 pela Internet. Caro. É bom para aprender.

(*)http://es.wikipedia.org/wiki/Augusto_Monterroso