Ávido por novidade? Só que não é tão novo assim. Disposto a saborear a obra completa de um escritor numa única brochura? Não, calma. Nada de 1000 páginas, em tipo arial 8 ou menor, folhas de seda como as de bíblia, onde urge uma lupa. Falo de Murilo Rubião, em “Contos Reunidos”. Rubião é um escritor quase que esquecido pela Imprensa Literária. Trata-se de mais uma grande injustiça para quem, ao lado do também grande José J. Veiga, tornou-se referencial do gênero fantástico na Literatura Brasileira.
O mineiro de Carmo de Minas, MG, Murilo Eugênio Rubião é de 1916 e estreou tardiamente, aos 31 anos, em 1947, com “O ex-mágico”. Em 1953, “A estrela vermelha”; depois “Os dragões e outros contos”, de 1965; “O pirotécnico Zacarias”, de 1974; “O convidado”, também de 1974; “A casa do girassol vermelho”, de 1978; e “O homem do boné cinzento e outra histórias”, de 1990. Rubião faleceu em 16/09/1991. Este volume póstumo, de 2005, “Contos Reunidos” traz todos os contos do autor de forma definitiva, em última versão. Tem até um conto inédito chamado “A diáspora”. Falo “em forma definitiva ou última versão”, porque Murilo Rubião tinha um estranho hábito: o de estar sempre revisando e reescrevendo seus contos, mesmo depois de publicados. Então a releitura dos seus contos é sempre uma grande e agradável surpresa.
A temática dos contos de Rubião não é repetitiva, mas traz uma constância: a abordagem do absurdo, do inconcebível, das coisas inexplicáveis, com características até surreais, dando uma sensação de estranhamento nas pessoas. Este recurso estilístico se popularizou com Franz Kafka, depois se repetiu com sucesso, principalmente, através dos argentinos Julio Cortázar e Jorge Luís Borges. No Brasil, Rubião e José J. Veiga são os principais expoentes do gênero, mas com um quê a mais, pois trazem aquela peculiaridade só nossa, característica dos bons escritores nacionais. Rubião, ao ler a crítica a respeito do seu primeiro livro, estranhou a caracterização da sua obra por uma suposta “influência kafkiana”, no que alegou que jamais havia lido Kafka antes da publicação. Sob o artifício do aparente absurdo sem propósito, do ilógico, do “non sense”, o escritor traz à tona o absurdo do cotidiano da nossa realidade, a qual deve e precisa ser revista e questionada, sob pena da alienação e do conformismo. Pois, se ainda não perceberam, a rotina de dias tão iguais, que só conseguimos distingui-los pelos calendários ou pela programação da tevê, se não nos torna meio autômatos, cega-nos justamente naquilo que não queremos enxergar.
“Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior. Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores. Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude. Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota.(...) Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos. Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.” (“O ex-mágico da Taberna Minhota” – 1947)
“A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso, com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de homens.” (“O pirotécnico Zacarias” – 1974)
“Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava. Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente.(...) Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à amurada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria. Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.” (“Bárbara”, p.33)
“Alguns dias transcorridos, perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo. Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.” (“Teleco, o coelhinho”, p.143)
Bem. Sei que meu esforço aqui será em vão. Para saber e tirar suas próprias conclusões sobre a produção impar do magnífico Murilo Rubião, só lendo mesmo. O livro está aí. “Contos Reunidos”, apenas 276 páginas, com letras normais, papel padrão. Editado pela Editora Ática, São Paulo, 2005.
Mais informações sobre o autor, acesse:
http://www.murilorubiao.com.br/