quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Balé Ralé. Marcelino Freire



Para não dizer que não conhecia o trabalho de Marcelino Freire antes de “Balé Ralé", eu já havia lido o monótono “Os cem menores contos brasileiros do século”, mas que fora apenas organizado por ele. O Nelson de Oliveira, em vários artigos, já vinha fazendo propaganda do “talentoso” Marcelino. E eu sou seguidor das sugestões do Nelson, através das quais venho conhecendo bons escritores contemporâneos sem me frustrar.

De qualquer forma, quem lê, pela primeira vez, “Balé Ralé”, seja um leitor exigente ou não, acaba por cair no famoso “ame-o ou deixe-o”. Quando se fala em Marcelino Freire, devemos esquecer adjetivos como “talentoso”, “brilhante”, pois são qualificações “doces” demais. Não conhecia até então a fisionomia do Marcelino e quem não o conhece, é bem capaz de imaginá-lo sendo uma criatura que tem os olhos vermelhos cor-de-sangue, que deve soltar fogo pelas ventas, ou que vomita os textos em forma de agulhas. Mas o Marcelino, apesar da voracidade do que escreve, tem até uma aparência simpática, tanto que, na foto dele no verso do audiolivro “Contos Negreiros”, está parecido com o “Arrigo Barnabé” nos tempos do MPB Shell de 1981.

Ou seja, trocando em miúdos, a escrita de Marcelino em “Balé Ralé” é forte, contundente, visceral, quase um atropelamento, por um caminhão, e daqueles bitrem, e carregado de areia ainda. Começando pela capa do livro: foto de “Os homens de Weerdinge”, do acervo de Drents Museum, que, conforme detalhe numa das orelhas, são múmias que foram encontradas em um pântano, abraçadas, sendo também conhecidas como “o casal gay mais antigo da Holanda”. ‘Tá, mas e o conteúdo? Calma. É que agora que a coisa pega. Marcelino em “Balé Ralé” exibe um estilo de “moleque”, daqueles que só gosta de sentar no fundo da sala de aula para ficar atirando bolinha de papel com o canudo da caneta só para incomodar os colegas e infernizar aquela professora de 60 anos, que voltou a dar aula depois de aposentada.

Senão, o que dizer da inédita defesa de supostos e atuais direitos de um “homossexual fossilizado”: “Sabe aquele homem que encontraram no gelo? Encontraram no gelo da Prússia?... Este homem dava o cu para outros homens. E ninguém – até então – tinha nada a ver com isso.” (in “Homo Erectus”). E o retrato, surpreendente, para não cair no aqui inadequado “comovente”, da louca paixão de um homem (espada) por um travesti: a “Beth Blanchet, meu amor, porra. Juro que deixo você enfiar no meu cu esse pau gostoso. Eu deixo.” (in “Mulheres Trabalhando”). E este indício de algo maléfico, senão hilário: “...Voz de capeta falando no meu ouvido, que é isso? Não, minha senhora. Repito: ninguém manda em mim. Nem o Diabo. Vou pular porque eu quero. Porque eu quero. Vão para o inferno.” (in “A ponte o horizonte”). Ou o retrato fatídico, comum, da origem de muitas prostitutas, ao lembrarem de abusos na infância: “...Meu pai um dia mostrou o pau pra mim, balançou. Eu tinha doze anos, sei lá. Doze anos, nove anos. Mijou olhando para mim, os olhos azuis do meu pai... Desci as unhas roxas pelas coxas do velho, toquei seu umbigo. Fingi um sorriso. Vencerei tudo isso. Era puta ou não era puta, porra?” (in “Phoder”). E não há sentimentalismo, nada é bucólico ou lírico, é para chocar mesmo, até quando uma neta se vê obrigada a cuidar do avô inválido: “Sabe, vovô, eu preciso lhe contar. Ontem, arranjei um homem, vovô. Um homem de verdade, é verdade. Ele chegou, me chamou pra sambar, se esfregou em mim a noite toda. Há tempo meu coração estava precisando. Nunca é tarde,vovô, por que o espanto? Vovô, o pau dele era desse tamanho... Vovô, não é que ele gozou na minha boca.” (in “Vovô”).

Está bem, parei, se não eu acabo contando muita coisa e vou estragar a graça da leitura. Mas não há com que se preocupar, pois em “Balé Ralé”, são “18 improvisos”, como foram denominados os textos. Marcelino Freire é assim mesmo, é avesso a “nhê-nhê-nhê”, é na cara dura mesmo, vias de fato. O linguajar é o linguajar do povo, do povão, que não há frescura, nem fica fazendo imagem para aparecer, dando uma de “bonzinho”, mostrando a educação que não teve. A vida é assim mesmo, não adianta querer se enganar, lendo livros de “estórias da carochinha”.

O gaúcho João Gilberto Noll é quem apresenta “Balé Ralé” e parece ter feito um esforço enorme para qualificar uma obra tão difícil: “...Entre São Paulo e Pernambuco evoluem as criaturas de um país periférico -, prostitutas, travestis, crianças usufruídas sexualmente por gente muito próxima, mães que distribuem os filhos, um filho bailarino a levitar acima das possibilidades dos charcos tropicais... " se é que tal livro de humor rítmico e dançante, trate de vitimizações, conclui.

Agora, se o leitor gosta de ler livrinhos para fugir da realidade, esquecer dos problemas reais, e viver num mundo de conto de fadas, então não irá gostar de “Balé Ralé”, e como indicação mesmo são os livros de “Barbara Cartland”, os romances de “Sabrina”, auto-ajuda e, claro, televisão, muita televisão, principalmente, as ótimas novelas da globo, pois lá ninguém fala palavrão para putear os outros, como a gente costuma ouvir todos os dias em todos os lugares.

Recentemente, trocando idéias com a escritora Eliana de Freitas (Oculta – Uma sentença masculina – de 2006), que conheceu pessoalmente o Marcelino de Freitas, ela chegou a dizer: “Marcelino tem um poder de persuasão tamanho que é capaz de vender qualquer coisa, até terrenos na lua... O evento era para falar da reforma ortográfica e o Marcelino declarou que era contra a reforma, mudou de assunto e começou a falar sobre si e sua obra”. Eu, particularmente, gostei demais do estilo do Marcelino e já estou lendo “Contos Negreiros”.

Marcelino Freire nasceu em Sertânia, PE, em 1967. Vive em São Paulo desde 1991. Já escreveu vários livros, dentre eles “Angu de Sangue” (2000) e “Contos Negreiros” (2005).