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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Dois passos antes da esquina. Marcos Fernando Kirst


Em “Dois passos antes da esquina” (2009), o escritor gaúcho Marcos Fernando Kirst, revelando-se também um exímio romancista, apresenta-nos um romance intimista, denso e instigante. Um romance nos moldes do psicológico, em linguagem sóbria, muito mais que conservadora. Quase atemporal, pois a história nos dá a impressão de que lemos um livro “antigo”, não fossem alguns “links” contemporâneos, como “telefone celular”. O livro traz a história do protagonista Otto, um velho militar aposentado, recém viúvo, a procurar nas lembranças e reflexões sobre o passado um espécie de auto-conhecimento ou redescobrimento.
Como é dito numa das orelhas do livro: “Ambientada  em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, a história acompanha os primeiro dias de viuvez de um personagem que, aos poucos e de maneira imprevista, descobre que o íntimo das pessoas pode conter universos inesgotáveis a serem desbravados.”
Os capítulos receberam títulos, como eram comuns em romances capitulados em folhetins, aqueles de antigos semanários impressos. E há momentos em que esses capítulos, mesmo individualizados, mantém a consistência e a integridade, em passagens ricas, ternas, senão sublimes, como as transcritas a seguir:
A dimensão do amor que sentia por aquela mulher só ficou clara aos oitenta anos de idade, parado defronte à lápide que acomodava o corpo da esposa sepultada há duas semanas. Tragou profundamente toda a fumaça do cigarro e soltou-a devagar pelas narinas, usufruindo de novo o prazer que cultivava desde moleque e que ainda não o matara. Fitou mais uma vez o nome encravado na pedra e observou a foto, cuidadosamente escolhida junto com a filha mais velha para eternizar a imagem da mulher sobre aquele pedaço de terra no pequeno cemitério aos fundos da capela. Era então ali, dentro daquele buraco, escavado no interior do Rio Grande do Sul, que ela permaneceria de agora em diante, só esperando pela sua própria chegada para ocupar o espaço ao lado? Então era isso? Então é assim que as coisas se encerram?
Centelhas de lembranças voaram junto com a bagana do cigarro lançada fora no peteleco que antecedeu a meia-volta soturna em direção ao carro, no calor dos trinta graus que às vezes assola a terra vermelha daquelas paragens. Era domingo. Mas domingos haviam sido todos os dias de sua vida, desde a aposentadoria, há trinta anos. Reforma, no jargão militar. Três décadas de domingos junto a ela, desde então. Mas este domingo, domingo mesmo, assim, sozinho, taciturno, experimentando sentimentos que ainda não sabia identificar e traduzir, era algo diferente. Era o prelúdio de todos os domingos que viriam dali em diante, na busca pelo reencontro de si mesmo perante uma situação para a qual julgara ter se preparado durante os últimos meses. “( in “No cemitério” - p.13)
Acendeu a luz da saleta já tarde da noite e encaminhou-se para a estante dos livros, determinado a encontrar ali, entre os tantos volumes que pareciam se acotovelar para manterem-se eretos, um espaço para deixar O Nome da Rosa, agora lido e desvendado. Provavelmente algum intervalo entre aquelas dezenas de obras fora ocupado até recentemente por aquele livro que permanecia ainda seguro entre suas mãos, mas não haveria como reconhecer o lugar que Irma destinara a ele nos tempos em que ela, e somente ela, administrava e comandava aquele verdadeiro quartel de soldados impressos que pareciam formar fila em posição de sentido, aguardando somente a ordem de se apresentarem e revelarem, cada um, um universo novo e desconhecido. Tamanhos variados, cores variadas, texturas, volumes... cada livro exibia sua própria individualidade, igual aos batalhões de soldados que ele próprio comandara em vida, com a diferença de que raramente tivera a oportunidade ou mesmo o interesse de desvendar os mundos que cada um dos subordinados encerrava. Coisas da vida. Nem mesmo a própria individualidade ele era capaz de reconhecer nos últimos dias.
Lançou os olhos a um dos andares da estante que parecia menos compactado de lado a lado com os volumes e abriu espaço separando dois livros encadernados em brochura, onde enfiou aquele que nos últimos dias lhe fora companhia. Desacostumado ao manuseio daqueles objetos, empregou força e movimentos em excesso, provocando a queda de um pequeno volume que, sabe-se lá há quanto tempo, há quantos anos, repousava na horizontal na fila, sobre os outros que corretamente ali se empertigavam. O livro abriu-se em páginas no chão da saleta, revelando a fragilidade da encadernação, mas mantendo-se ainda intacto. Agachou-se prontamente para juntá-lo, como a temer que, deixando-o ali por muito mais tempo, acabasse colaborando para a destruição do pequeno objeto ao qual ela consagrava tanto carinho, assim como a todos os outros presentes ali, naquela sala de livros.
Juntou-o, tirou o pó e chamou-lhe a atenção a capa, ricamente ilustrada com um desenho feito à mão e colorido: um menino de calças curtas empoleirava-se no alto de uma árvore, olhando assustado para uma onça que rugia em seu encalço. Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Um susto, uma emoção e uma ideia embalaram seu sono naquela véspera de sábado e de nova partida rumo a Vila Molinos.” (in “Entre Páginas”, p. 118/119)
Sobre o autor. Nascido em Ijuí (RS), Marcos Fernando Kirst cursou Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e trabalhou em vários jornais, entre eles A Razão, em Santa Maria, e Pioneiro, em Caxias do Sul. Atualmente colabora com a revista Acontece e o jornal Informante (Farroupilha). Também desenvolve trabalhos editoriais para a editora Belas-Letras, de Caxias do Sul. Em outubro de 2008, lançou na Feira do Livro de Caxias do Sul o livro infantil O Gato Que Não Sabia de Nada, que trata de um gato com crise de identidade: não sabe se é gato, se é cachorro ou se faz parte de uma pilha de livros. A aventura, narrada pelo gatinho Bioy, é a estréia de Kirst em livro de ficção. A obra ficou entre as mais vendidas da feira. Na seqüência, o autor integrou a programação de eventos relativos às Feiras de Livros (lançamento, sessões de autógrafos e bate-papos literários) nas cidades gaúchas de Farroupilha, Ijuí e Porto Alegre. Antes desse livro, Kirst participou de antologias, venceu concursos literários e publicou o livro A História nas Estantes – 60 Anos da Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer.



quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O gato que não sabia de nada. Marcos Fernando Kirst


O livro de estréia de Marcos Fernando Kirst, na ficção, é um livro infanto-juvenil. E aqui abro um parêntesis necessário e importante. Recentemente, lendo uma entrevista com o escritor Nelson de Oliveira, ele dissera que começou a ler muito tarde. Admitira que, se não me engano, foi por volta dos seus 15 ou 16 anos e que, desde então, não parou mais. Quando li a sua declaração, logo me identifiquei, pois eu também comecei a ler por volta da mesma idade, e, a meu ver, aos 16 anos realmente é tarde, muito tarde. Por outro lado, já o escritor Marcelo Mirisola disse que começou a ler aos 25. Claro que nunca é tarde demais para se começar a ler, mas, quando se começa a ler livros muito tarde, um período muito importante na vida de uma pessoa adulta sadia, normal (entenda aquela que tem a leitura como um hábito tão comum como escovar os dentes, ou por que não?, se alimentar) é completamente perdido. Recuperável, mas não como seria se acontecesse na época adequada. Refiro-me à leitura de livros infantis, lidos quando se ainda é criança; ou ler um livro infanto-juvenil na tenra adolescência. A leitura de um livro infantil ou infanto-juvenil por um adulto é diferente. Dependendo do adulto, pode até ser uma leitura mais rica, mas isso é raro e não é o que acontece na maioria das vezes. A visão do adulto “padrão” sofre influências imperceptíveis e costuma ser curta, limitada, podada, fruto de anos de educação castradora pelos inúmeros “pré-conceitos” e “falsas-verdades”, que herdamos e que a sociedade moderna nos impõe. Uma criança acostumada com leitura desde cedo tira muito mais proveito do que lê, pois o livro é apenas uma pequena janela que se abre a exibir um mundo rico, desconhecido, e sem limites para aquele vulcão em erupção, de imaginação e criatividade, que é a mente infantil.

E assim, antes de falar propriamente do livro “O gato que não sabia de nada", quero dizer que meu filho leu o livro antes de mim. Claro que não poderei entrar na impressão que teve do livro, mas acredito que ele tenha tirado muito mais proveito da leitura. O escritor gaúcho Marcos Fernando Kirst nos apresenta uma história “infanto-juvenil” diferente, e por vários aspectos, mas principalmente por dois, os quais destaco. Primeiro, porque a narrativa é feita em primeira pessoa, oops!, digo, em primeira... voz, e uma voz felina. Quem nos conta a história é o gato Bioy, o protagonista. E assim, nós leitores, nos deparamos com o mundo dos “humanos” visto sob a ótica de quem só tem poucos centímetros de altura. E tudo então parecer ser grande demais, como os “bichos-humanos” “bem grandões”; os “monstros-carros” ou “carros-monstros”; “veterinário grandalhão” e sua “mãozona”. Depois, na linguagem que o gato Bioy utiliza para nos contar sua história, como foi adotado e como batizou seus donos de “Sr. Miau” e “Sra. Miaau, com dois ‘as’”; que mora na cidade Miaaau, na rua Miau-Miau, número Miu. Nossa! Algum adulto deve achar difícil entender uma linguagem “felina”, então faça um teste: dê o livro “O gato que não sabia de nada” para uma criança e depois pergunte a ela se ela acha difícil ou complicado. Com certeza dirá, como Bioy : “é bem fácil, e espero todos vocês de patinhas abertas.”

Humm! Parece muito infantil, alguém poderá dizer, talvez monótono demais. Então, o que acham desta divertida passagem: “Eu é que não iria engolir aquilo de jeito nenhum, pois, se era para os tais de vermes, os vermes que engolissem aquilo, eu é que não, pois posso ser gato, macaquinho,vira-lata ou até jornalista, mas verme não sou e, portanto, não engoliria remédio para vermes! Foi tudo isso que eu disse para eles entre meus dentes enquanto eles me forçavam a engolir a pílula, que acabou assustadoramente caindo pela minha goela abaixo, apesar de meus protestos. Urgh! Pfuaf!!! Eca!!!!!” (p. 23).

Ou, então, esta brilhante comparação: “Humanos são assim mesmo, não entendem nada do que a gente diz para eles, mas acham que nós, os bichos, temos a obrigação de fazer aquilo que eles nos dizem. É por isso que nós, gatos, meio revoltados que somos, gostamos mais de fazer aquilo que nos dá na telha, e não somos tão obedientes quanto os tais dos cachorros.” (p. 25).

O próprio protagonista se descreve como sendo: “eu transformado em Bioy, o gatinho-menino, que tem crises de identidade.” (p.25); e mais adiante, numa magnífica passagem, se auto-descobre: “...eu, quando estou ali dentro da sacola, penso que sou um livro. Então é isto: não sei se sou gato, se sou macaquinho, se sou jornalista, se sou verme ou se sou livro. Eu sou um gato que não sabe de nada!” (p. 28).

Mas, então, como confiar na narrativa de quem “não sabe de nada”? E aí é que está um dos pontos positivos da “narrativa em primeira pessoa”, que, embora não seja confiável, lemos e temos a visão de apenas um ponto de vista, que pode ser mentira, verdade, equívoco. Mas, em “Um gato que não sabia de nada”, com certeza, o leitor, seja criança, adolescente ou adulto, além do prazer da leitura, poderá tirar muito proveito para o nosso dia a dia. Ainda mais se for alguém que goste de animais de estimação, seja cão ou gato. Como esta passagem das páginas 28 e 29: “E tem vezes que eles ficam simplesmente encantados quando eu, estando no meio dos dois no sofá da sala, fixo meu olhar naquele aparelho barulhento e cheio de imagens coloridas que mudam o tempo todo, que eles parecem adorar. ‘Veja, amor, o Bioy assiste televisão’, eles comentam... Nada a ver! Fico, na verdade, é meio pasmado por alguns segundos, tentando entender onde está a graça que eles encontram naquilo, mas logo me canso e prefiro voltar aos carinhos deles e fechar meus olhos para sonhar coisas e mundos fantásticos que só a imaginação dos gatos é capaz de criar.”

Bom, meu objetivo aqui, ao falar de “O gato que não sabia de nada”, de Marcos Fernando Kirst, não é o de analisar, mas apenas divulgar um bom livro, e uma ótima dica de leitura. Se não for para um pai de família, que seja para os filhos, melhor seria para ambos, pois é divertimento garantido. Confesso que gosto de ler os livros infantis dos meus filhos. Foi assim com “As frangas” do Caio Fernando Abreu, “Memórias de menina” de Raquel de Queiroz, e outros que me fogem agora . Ler um livro infantil é uma das poucas oportunidades que o adulto tem de, mesmo que por breves momentos, viajar no tempo e voltar a ser criança, nem que seja só na nossa cabeça.

O autor, Marcos Fernando Kirst, nasceu na cidade gaúcha de Ijuí, em 1966. Atualmente mora em Caxias do Sul, RS, atuando como jornalista e escritor. O livro “O gato que não sabia de nada” tem ilustrações da artista plástica Dani Magnabosco. O livro foi publicado em 2008, pela editora Belas-Letras, Caxias do Sul, RS. Marcos também é autor do romance "Dois passos antes da esquina", de 2009.