Em “Dois passos antes da esquina” (2009), o escritor gaúcho Marcos Fernando Kirst, revelando-se também um exímio romancista, apresenta-nos um romance intimista, denso e instigante. Um romance nos moldes do psicológico, em linguagem sóbria, muito mais que conservadora. Quase atemporal, pois a história nos dá a impressão de que lemos um livro “antigo”, não fossem alguns “links” contemporâneos, como “telefone celular”. O livro traz a história do protagonista Otto, um velho militar aposentado, recém viúvo, a procurar nas lembranças e reflexões sobre o passado um espécie de auto-conhecimento ou redescobrimento.
Como é dito numa das orelhas do livro: “Ambientada em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, a história acompanha os primeiro dias de viuvez de um personagem que, aos poucos e de maneira imprevista, descobre que o íntimo das pessoas pode conter universos inesgotáveis a serem desbravados.”
Os capítulos receberam títulos, como eram comuns em romances capitulados em folhetins, aqueles de antigos semanários impressos. E há momentos em que esses capítulos, mesmo individualizados, mantém a consistência e a integridade, em passagens ricas, ternas, senão sublimes, como as transcritas a seguir:
“A dimensão do amor que sentia por aquela mulher só ficou clara aos oitenta anos de idade, parado defronte à lápide que acomodava o corpo da esposa sepultada há duas semanas. Tragou profundamente toda a fumaça do cigarro e soltou-a devagar pelas narinas, usufruindo de novo o prazer que cultivava desde moleque e que ainda não o matara. Fitou mais uma vez o nome encravado na pedra e observou a foto, cuidadosamente escolhida junto com a filha mais velha para eternizar a imagem da mulher sobre aquele pedaço de terra no pequeno cemitério aos fundos da capela. Era então ali, dentro daquele buraco, escavado no interior do Rio Grande do Sul, que ela permaneceria de agora em diante, só esperando pela sua própria chegada para ocupar o espaço ao lado? Então era isso? Então é assim que as coisas se encerram?
Centelhas de lembranças voaram junto com a bagana do cigarro lançada fora no peteleco que antecedeu a meia-volta soturna em direção ao carro, no calor dos trinta graus que às vezes assola a terra vermelha daquelas paragens. Era domingo. Mas domingos haviam sido todos os dias de sua vida, desde a aposentadoria, há trinta anos. Reforma, no jargão militar. Três décadas de domingos junto a ela, desde então. Mas este domingo, domingo mesmo, assim, sozinho, taciturno, experimentando sentimentos que ainda não sabia identificar e traduzir, era algo diferente. Era o prelúdio de todos os domingos que viriam dali em diante, na busca pelo reencontro de si mesmo perante uma situação para a qual julgara ter se preparado durante os últimos meses. “( in “No cemitério” - p.13)
“Acendeu a luz da saleta já tarde da noite e encaminhou-se para a estante dos livros, determinado a encontrar ali, entre os tantos volumes que pareciam se acotovelar para manterem-se eretos, um espaço para deixar O Nome da Rosa, agora lido e desvendado. Provavelmente algum intervalo entre aquelas dezenas de obras fora ocupado até recentemente por aquele livro que permanecia ainda seguro entre suas mãos, mas não haveria como reconhecer o lugar que Irma destinara a ele nos tempos em que ela, e somente ela, administrava e comandava aquele verdadeiro quartel de soldados impressos que pareciam formar fila em posição de sentido, aguardando somente a ordem de se apresentarem e revelarem, cada um, um universo novo e desconhecido. Tamanhos variados, cores variadas, texturas, volumes... cada livro exibia sua própria individualidade, igual aos batalhões de soldados que ele próprio comandara em vida, com a diferença de que raramente tivera a oportunidade ou mesmo o interesse de desvendar os mundos que cada um dos subordinados encerrava. Coisas da vida. Nem mesmo a própria individualidade ele era capaz de reconhecer nos últimos dias.
Lançou os olhos a um dos andares da estante que parecia menos compactado de lado a lado com os volumes e abriu espaço separando dois livros encadernados em brochura, onde enfiou aquele que nos últimos dias lhe fora companhia. Desacostumado ao manuseio daqueles objetos, empregou força e movimentos em excesso, provocando a queda de um pequeno volume que, sabe-se lá há quanto tempo, há quantos anos, repousava na horizontal na fila, sobre os outros que corretamente ali se empertigavam. O livro abriu-se em páginas no chão da saleta, revelando a fragilidade da encadernação, mas mantendo-se ainda intacto. Agachou-se prontamente para juntá-lo, como a temer que, deixando-o ali por muito mais tempo, acabasse colaborando para a destruição do pequeno objeto ao qual ela consagrava tanto carinho, assim como a todos os outros presentes ali, naquela sala de livros.
Juntou-o, tirou o pó e chamou-lhe a atenção a capa, ricamente ilustrada com um desenho feito à mão e colorido: um menino de calças curtas empoleirava-se no alto de uma árvore, olhando assustado para uma onça que rugia em seu encalço. Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Um susto, uma emoção e uma ideia embalaram seu sono naquela véspera de sábado e de nova partida rumo a Vila Molinos.” (in “Entre Páginas”, p. 118/119)
Sobre o autor. Nascido em Ijuí (RS), Marcos Fernando Kirst cursou Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e trabalhou em vários jornais, entre eles A Razão, em Santa Maria, e Pioneiro, em Caxias do Sul. Atualmente colabora com a revista Acontece e o jornal Informante (Farroupilha). Também desenvolve trabalhos editoriais para a editora Belas-Letras, de Caxias do Sul. Em outubro de 2008, lançou na Feira do Livro de Caxias do Sul o livro infantil O Gato Que Não Sabia de Nada, que trata de um gato com crise de identidade: não sabe se é gato, se é cachorro ou se faz parte de uma pilha de livros. A aventura, narrada pelo gatinho Bioy, é a estréia de Kirst em livro de ficção. A obra ficou entre as mais vendidas da feira. Na seqüência, o autor integrou a programação de eventos relativos às Feiras de Livros (lançamento, sessões de autógrafos e bate-papos literários) nas cidades gaúchas de Farroupilha, Ijuí e Porto Alegre. Antes desse livro, Kirst participou de antologias, venceu concursos literários e publicou o livro A História nas Estantes – 60 Anos da Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer.
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