Por Marcelo Moutinho (escritor e jornalista).
Não nasce da falta – caso de Fabiano, em "Vidas secas" -, tampouco da recusa à palavra – como Mersault, em "O estrangeiro" -, o silêncio a que João Anzanello Carrascoza faz alusão logo no título de seu novo livro. Os contos que integram o volume lançado pela Cosac Naify abrem uma terceira possibilidade, propondo um contraponto à algaravia do mundo em histórias sussurradas, cerzidas em fiapos de enredos que tratam de situações aparentemente banais: uma viagem de negócios do pai em companhia de seu filho, o encontro entre dois casais amigos, a visita de um irmão depois de muitos anos.
"O volume do silêncio" reúne narrativas publicadas originalmente em antologias e nos livros "Hotel Solidão" (1994), "O vaso azul" (1998), "Duas tardes" (2002), "Meu amigo João" (2003) e "Dias raros" (2004), além de um texto inédito. A seleção, feita por Nelson de Oliveira, permite um interessante vôo sobre a trajetória do autor, evidenciando o processo de depuração estilística a que se submeteu, ainda que de modo inconsciente.
É o próprio Nelson quem afirma, no posfácio, que "a linha que separa o sublime do kitsch é invisível e se move o tempo todo". Nos contos mais remotos, Carrascoza claramente ultrapassa tal linha. Isso acontece, por exemplo, em "Caçador de vidro" e "O vaso azul", nos quais os comentários do narrador soam excessivos e parecem querer reiterar aquilo que já foi insinuado. À medida que o leitor avança nas páginas do livro, contudo, pode notar com nitidez a evolução do domínio do autor sobre a própria escritura. Fiel a seus temas mais caros – as minúcias da vida cotidiana, a infância, a dor e as delícias do amadurecimento -, o texto de Carrascoza ganha em sobriedade e precisão: as metáforas tornam-se mais nuançadas, o volume do silêncio aumenta.
Então nos deparamos com pequenas preciosidades como "O menino e o pião", relato da espera de um garoto por seu pai, que culmina com a cena do velho a observá-lo, do corredor às escuras, enquanto brinca, sozinho. "O menino não cogita que um dia esse cordel se partirá. E, sem ele, o pião jamais será o que foi, como a roseira não é mais a semente que a gerou, nem o sol, a poeira que se aglutinou para formá-lo, círculo de luz, esplendor", anota o narrador, reproduzindo a espécie de elegia que o pai experimenta ali.
Essa conexão entre imagens externas e sentimentos interiores, marca do trabalho de Carrascoza, repete-se em "Chamada", diálogo salpicado de não-ditos entre a mãe doente e a filha que vai para a escola. A mãe, com "os olhos inchados de insônia, nos quais ainda se podia apanhar a noite, como uma moeda no fundo do bolso"; a filha, sentindo o peso de deixá-la ao informar que seguirá para a aula: "A mulher escutou como se a filha nada tivesse dito senão Vou para a escola, mamãe, e ignorasse que existiam outras palavras, agarradas aos pés dessas, esguichando silêncio".
Embora raramente invista-se na primeira pessoa, o narrador de Carrascoza parece ganhar os olhos dos personagens, tal a sua proximidade. É o que ocorre quando expõe as dúvidas do garoto que, em "Dias raros", retorna das férias na casa da avó. Ele sofrera com a obrigação de ir, mas se dilacera ainda mais ao ter de voltar, sem compreender como duas vontades tão díspares puderam brotar em tão breve intervalo: "Sempre uma ida às coisas e sua seqüente despedida. Na mesma hora que ganhava a vivência, nele ela se perdia. Sorte que vinha outra, a cicatrizar a alegria ou a abrir nova ferida, também logo substituída. E as pessoas nesse renovar-se, envelhecendo (...) com suas raízes sujas de terra, cavoucando seus mistérios, bem-querendo-se (...). E todas, todas, o tempo inteiro, indo embora".
São assim, plenos de alma num tempo de estridências ocas, os personagens de Carrascoza. Enxergam a poesia possível nos pequenos acontecimentos; buscam, como queria Calvino, o que não é inferno no meio do inferno. Ainda que essa exceção responda pela simples imagem da mata, que arrebata o menino de "Travessia". "A terra, seca ou gelada pela chuva, não dizia para ele senão terra; a árvore, pousasse ou não nela um pássaro, não dizia senão árvore; (...) as coisas anunciavam o que eram, e no entanto ele já sabia que, além de terra, árvore, folha, elas diziam somos o que somos". Num movimento análogo à literatura de Carrascoza, o garoto via "imensidão naquelas miudezas".
Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
Não nasce da falta – caso de Fabiano, em "Vidas secas" -, tampouco da recusa à palavra – como Mersault, em "O estrangeiro" -, o silêncio a que João Anzanello Carrascoza faz alusão logo no título de seu novo livro. Os contos que integram o volume lançado pela Cosac Naify abrem uma terceira possibilidade, propondo um contraponto à algaravia do mundo em histórias sussurradas, cerzidas em fiapos de enredos que tratam de situações aparentemente banais: uma viagem de negócios do pai em companhia de seu filho, o encontro entre dois casais amigos, a visita de um irmão depois de muitos anos.
"O volume do silêncio" reúne narrativas publicadas originalmente em antologias e nos livros "Hotel Solidão" (1994), "O vaso azul" (1998), "Duas tardes" (2002), "Meu amigo João" (2003) e "Dias raros" (2004), além de um texto inédito. A seleção, feita por Nelson de Oliveira, permite um interessante vôo sobre a trajetória do autor, evidenciando o processo de depuração estilística a que se submeteu, ainda que de modo inconsciente.
É o próprio Nelson quem afirma, no posfácio, que "a linha que separa o sublime do kitsch é invisível e se move o tempo todo". Nos contos mais remotos, Carrascoza claramente ultrapassa tal linha. Isso acontece, por exemplo, em "Caçador de vidro" e "O vaso azul", nos quais os comentários do narrador soam excessivos e parecem querer reiterar aquilo que já foi insinuado. À medida que o leitor avança nas páginas do livro, contudo, pode notar com nitidez a evolução do domínio do autor sobre a própria escritura. Fiel a seus temas mais caros – as minúcias da vida cotidiana, a infância, a dor e as delícias do amadurecimento -, o texto de Carrascoza ganha em sobriedade e precisão: as metáforas tornam-se mais nuançadas, o volume do silêncio aumenta.
Então nos deparamos com pequenas preciosidades como "O menino e o pião", relato da espera de um garoto por seu pai, que culmina com a cena do velho a observá-lo, do corredor às escuras, enquanto brinca, sozinho. "O menino não cogita que um dia esse cordel se partirá. E, sem ele, o pião jamais será o que foi, como a roseira não é mais a semente que a gerou, nem o sol, a poeira que se aglutinou para formá-lo, círculo de luz, esplendor", anota o narrador, reproduzindo a espécie de elegia que o pai experimenta ali.
Essa conexão entre imagens externas e sentimentos interiores, marca do trabalho de Carrascoza, repete-se em "Chamada", diálogo salpicado de não-ditos entre a mãe doente e a filha que vai para a escola. A mãe, com "os olhos inchados de insônia, nos quais ainda se podia apanhar a noite, como uma moeda no fundo do bolso"; a filha, sentindo o peso de deixá-la ao informar que seguirá para a aula: "A mulher escutou como se a filha nada tivesse dito senão Vou para a escola, mamãe, e ignorasse que existiam outras palavras, agarradas aos pés dessas, esguichando silêncio".
Embora raramente invista-se na primeira pessoa, o narrador de Carrascoza parece ganhar os olhos dos personagens, tal a sua proximidade. É o que ocorre quando expõe as dúvidas do garoto que, em "Dias raros", retorna das férias na casa da avó. Ele sofrera com a obrigação de ir, mas se dilacera ainda mais ao ter de voltar, sem compreender como duas vontades tão díspares puderam brotar em tão breve intervalo: "Sempre uma ida às coisas e sua seqüente despedida. Na mesma hora que ganhava a vivência, nele ela se perdia. Sorte que vinha outra, a cicatrizar a alegria ou a abrir nova ferida, também logo substituída. E as pessoas nesse renovar-se, envelhecendo (...) com suas raízes sujas de terra, cavoucando seus mistérios, bem-querendo-se (...). E todas, todas, o tempo inteiro, indo embora".
São assim, plenos de alma num tempo de estridências ocas, os personagens de Carrascoza. Enxergam a poesia possível nos pequenos acontecimentos; buscam, como queria Calvino, o que não é inferno no meio do inferno. Ainda que essa exceção responda pela simples imagem da mata, que arrebata o menino de "Travessia". "A terra, seca ou gelada pela chuva, não dizia para ele senão terra; a árvore, pousasse ou não nela um pássaro, não dizia senão árvore; (...) as coisas anunciavam o que eram, e no entanto ele já sabia que, além de terra, árvore, folha, elas diziam somos o que somos". Num movimento análogo à literatura de Carrascoza, o garoto via "imensidão naquelas miudezas".
Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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