quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O gato que não sabia de nada. Marcos Fernando Kirst


O livro de estréia de Marcos Fernando Kirst, na ficção, é um livro infanto-juvenil. E aqui abro um parêntesis necessário e importante. Recentemente, lendo uma entrevista com o escritor Nelson de Oliveira, ele dissera que começou a ler muito tarde. Admitira que, se não me engano, foi por volta dos seus 15 ou 16 anos e que, desde então, não parou mais. Quando li a sua declaração, logo me identifiquei, pois eu também comecei a ler por volta da mesma idade, e, a meu ver, aos 16 anos realmente é tarde, muito tarde. Por outro lado, já o escritor Marcelo Mirisola disse que começou a ler aos 25. Claro que nunca é tarde demais para se começar a ler, mas, quando se começa a ler livros muito tarde, um período muito importante na vida de uma pessoa adulta sadia, normal (entenda aquela que tem a leitura como um hábito tão comum como escovar os dentes, ou por que não?, se alimentar) é completamente perdido. Recuperável, mas não como seria se acontecesse na época adequada. Refiro-me à leitura de livros infantis, lidos quando se ainda é criança; ou ler um livro infanto-juvenil na tenra adolescência. A leitura de um livro infantil ou infanto-juvenil por um adulto é diferente. Dependendo do adulto, pode até ser uma leitura mais rica, mas isso é raro e não é o que acontece na maioria das vezes. A visão do adulto “padrão” sofre influências imperceptíveis e costuma ser curta, limitada, podada, fruto de anos de educação castradora pelos inúmeros “pré-conceitos” e “falsas-verdades”, que herdamos e que a sociedade moderna nos impõe. Uma criança acostumada com leitura desde cedo tira muito mais proveito do que lê, pois o livro é apenas uma pequena janela que se abre a exibir um mundo rico, desconhecido, e sem limites para aquele vulcão em erupção, de imaginação e criatividade, que é a mente infantil.

E assim, antes de falar propriamente do livro “O gato que não sabia de nada", quero dizer que meu filho leu o livro antes de mim. Claro que não poderei entrar na impressão que teve do livro, mas acredito que ele tenha tirado muito mais proveito da leitura. O escritor gaúcho Marcos Fernando Kirst nos apresenta uma história “infanto-juvenil” diferente, e por vários aspectos, mas principalmente por dois, os quais destaco. Primeiro, porque a narrativa é feita em primeira pessoa, oops!, digo, em primeira... voz, e uma voz felina. Quem nos conta a história é o gato Bioy, o protagonista. E assim, nós leitores, nos deparamos com o mundo dos “humanos” visto sob a ótica de quem só tem poucos centímetros de altura. E tudo então parecer ser grande demais, como os “bichos-humanos” “bem grandões”; os “monstros-carros” ou “carros-monstros”; “veterinário grandalhão” e sua “mãozona”. Depois, na linguagem que o gato Bioy utiliza para nos contar sua história, como foi adotado e como batizou seus donos de “Sr. Miau” e “Sra. Miaau, com dois ‘as’”; que mora na cidade Miaaau, na rua Miau-Miau, número Miu. Nossa! Algum adulto deve achar difícil entender uma linguagem “felina”, então faça um teste: dê o livro “O gato que não sabia de nada” para uma criança e depois pergunte a ela se ela acha difícil ou complicado. Com certeza dirá, como Bioy : “é bem fácil, e espero todos vocês de patinhas abertas.”

Humm! Parece muito infantil, alguém poderá dizer, talvez monótono demais. Então, o que acham desta divertida passagem: “Eu é que não iria engolir aquilo de jeito nenhum, pois, se era para os tais de vermes, os vermes que engolissem aquilo, eu é que não, pois posso ser gato, macaquinho,vira-lata ou até jornalista, mas verme não sou e, portanto, não engoliria remédio para vermes! Foi tudo isso que eu disse para eles entre meus dentes enquanto eles me forçavam a engolir a pílula, que acabou assustadoramente caindo pela minha goela abaixo, apesar de meus protestos. Urgh! Pfuaf!!! Eca!!!!!” (p. 23).

Ou, então, esta brilhante comparação: “Humanos são assim mesmo, não entendem nada do que a gente diz para eles, mas acham que nós, os bichos, temos a obrigação de fazer aquilo que eles nos dizem. É por isso que nós, gatos, meio revoltados que somos, gostamos mais de fazer aquilo que nos dá na telha, e não somos tão obedientes quanto os tais dos cachorros.” (p. 25).

O próprio protagonista se descreve como sendo: “eu transformado em Bioy, o gatinho-menino, que tem crises de identidade.” (p.25); e mais adiante, numa magnífica passagem, se auto-descobre: “...eu, quando estou ali dentro da sacola, penso que sou um livro. Então é isto: não sei se sou gato, se sou macaquinho, se sou jornalista, se sou verme ou se sou livro. Eu sou um gato que não sabe de nada!” (p. 28).

Mas, então, como confiar na narrativa de quem “não sabe de nada”? E aí é que está um dos pontos positivos da “narrativa em primeira pessoa”, que, embora não seja confiável, lemos e temos a visão de apenas um ponto de vista, que pode ser mentira, verdade, equívoco. Mas, em “Um gato que não sabia de nada”, com certeza, o leitor, seja criança, adolescente ou adulto, além do prazer da leitura, poderá tirar muito proveito para o nosso dia a dia. Ainda mais se for alguém que goste de animais de estimação, seja cão ou gato. Como esta passagem das páginas 28 e 29: “E tem vezes que eles ficam simplesmente encantados quando eu, estando no meio dos dois no sofá da sala, fixo meu olhar naquele aparelho barulhento e cheio de imagens coloridas que mudam o tempo todo, que eles parecem adorar. ‘Veja, amor, o Bioy assiste televisão’, eles comentam... Nada a ver! Fico, na verdade, é meio pasmado por alguns segundos, tentando entender onde está a graça que eles encontram naquilo, mas logo me canso e prefiro voltar aos carinhos deles e fechar meus olhos para sonhar coisas e mundos fantásticos que só a imaginação dos gatos é capaz de criar.”

Bom, meu objetivo aqui, ao falar de “O gato que não sabia de nada”, de Marcos Fernando Kirst, não é o de analisar, mas apenas divulgar um bom livro, e uma ótima dica de leitura. Se não for para um pai de família, que seja para os filhos, melhor seria para ambos, pois é divertimento garantido. Confesso que gosto de ler os livros infantis dos meus filhos. Foi assim com “As frangas” do Caio Fernando Abreu, “Memórias de menina” de Raquel de Queiroz, e outros que me fogem agora . Ler um livro infantil é uma das poucas oportunidades que o adulto tem de, mesmo que por breves momentos, viajar no tempo e voltar a ser criança, nem que seja só na nossa cabeça.

O autor, Marcos Fernando Kirst, nasceu na cidade gaúcha de Ijuí, em 1966. Atualmente mora em Caxias do Sul, RS, atuando como jornalista e escritor. O livro “O gato que não sabia de nada” tem ilustrações da artista plástica Dani Magnabosco. O livro foi publicado em 2008, pela editora Belas-Letras, Caxias do Sul, RS. Marcos também é autor do romance "Dois passos antes da esquina", de 2009.