quarta-feira, 21 de julho de 2010

“Correio Litorâneo”. Nereu Afonso da Silva


Nereu Afonso da Silva
Correio Litorâneo”, de Nereu Afonso da Silva. 2006, Editora Record, 80 páginas, R$27,90 na Livraria Cultura.

Apresento mais um livro do tipo “se-não-gostar-devolvo-o-seu-dinheiro”! Para quem odeia livros volumosos, este tem apenas 80 páginas. E se você adora ler bíblias, pode ler e reler que sempre há de tirar algo de novo. Eu, por exemplo, li duas vezes, e a segunda leitura foi melhor que a primeira.

Apenas ler. Apenas ler? Palavras que me martelam. Dez da matina e ainda está 2º C. Põe frio nisso. Li o livro em duas horas e quinze minutos, mais a pausa para o lanche. Deveriam fornecer sanduíche de pão francês, queijo e mortadela e um copo de nescau quentinho ou café com leite. Mas não seria de graça. Nada é de graça. Descontariam no final do mês. Prefiro o nescau. Seu trabalho é apenas ler – diriam. Deixe a crítica para os críticos, pois eles ganham para isso. Limite-se apenas à leitura. Mas não dá, não consigo, sempre que leio, acabo por achar erros gráficos: “difuculdade”, na linha 17, segundo parágrafo, página 35; e “cumpadre”, na última palavra do 1º parágrafo, p. 55, se bem que este último pode ser apenas “estilístico”, o que é aceitável. Numa primeira leitura, sempre identifico sem querer erros gráficos, mas não consigo me desvincular do conteúdo, do clima das narrativas e já solto, entre outras coisas, meus comentários.

O livro foi editado pela Record, pelo Sistema Cameron da Divisão Gráfica. E, mesmo assim, há um erro gráfico. Imperdoável. O Nereu, o autor, superou quase 2000 outros escritores e deixaram um erro gráfico na impressão. Tem horas que me sinto como Winston Smith (“Nineteen Eighty-four”, G. Orwell) diante daqueles cinescópios monocromáticos à válvula com um teclado de máquina de escrever, criando a Novilíngua. Ou eu estou confundindo com  Sam Lowry de “Brazil, o filme” (Terry Gillian, 1985). Sei lá. O que importa mesmo é o livro do Nereu. Eu lia os livros e, sem querer, comentava minhas observações durante a pausa para o café com colegas que nem conhecia. Eles prestavam atenção demais, gravavam tudo e publicavam sem que eu soubesse. Falou em público é o fim do direito autoral. Agora eu sei, por isso eu minto, descaradamente para eles e para outros. Agora me deram uma planilha para enumerar os livros lidos. Anotei: livro nº 2458; a data: 20/07/2010, hoje; e o autor: Nereu Afonso da Silva.

Pediram que omitisse o nome do livro para não criar afeição, mas fiz um link oculto para outra planilha e, então, o título vai. E é a mais pura verdade, creiam:

 “Correio Litorâneo”, contos, vencedor do prêmio SESC de Literatura de 2006.

Desconfio, mas não duvido que a PF esteja investigando supostas irregularidades nos concursos literários. Dizem que é denúncia oriunda da ABL.  Alguns imortais querem criar a cadeira nº 41, a qual, como as demais, será de rodas também, mas motorizada. Sabe aquele chá?, com gotas de leite à inglesa (no Brasil), às 5 da tarde, que ninguém mais sente o aroma do chá, pois o cheiro avassalador de glade de lavanda toma conta do ambiente, tudo para suprimir o mofo e a naftalina. (Volte ao livro!)

Sim. Com relação ao livro de Nereu Afonso da Silva, num concurso com mais de 2000 participantes, os jurados souberam premiar, senão o melhor, um dos melhores. Seria a pausa para os aplausos da comissão julgadora de notáveis. Leitura gostosa, divertida, acessível, contemporânea. Nada daquela abominável erudição e daquele artificialismo semântico-gramatical. As narrativas fluem com naturalidade, tudo por que o livro não tem aquelas frases longas e chatas, dispostas em períodos compostos por subordinação e, graças ao Nereu, não me deparei com nenhuma daquelas terríveis orações subordinadas substantivas completivas nominais, tampouco a pior de todas, a subjetiva. Para que artificializar, se as frases com orações simples e diretas, tão comuns na oralidade, são muito mais que eficientes?

Nas poucas 79 páginas do livro, estão dispostos 8 (oito) contos muito bens distribuídos em duas partes: “Uns” e “Outros”. Os temas variam desde o hilário, quase-burlesco, “Úngaro dos Passos” (p.9); passando pelo terno e encantador “Goma-Arábica” (p.45 – aquele que mais gostei); até o meio-filosófico-intimista “Migravit ad Dominum” (p.77) que encerra o livro com brilhantismo de vencedor de concurso. Os contos de “Correio Litorâneo” possuem independência, cujas narrativas se mostram, às vezes?, não-lineares. Não se pode falar em “texto multifacetado”, como alguns críticos sugerem com frequência.

Os contos do livro estão ligados por um delicado liame, que nada mais é que o tal do “Correio Litorâneo”, como se as histórias estivessem sob o mesmo raio de abrangência do “pior jornal do planeta”, que “ia mofando nos lares e escritórios da região” (p.48). Como é de se esperar de um bom texto, ao final de cada conto lido, alternavam-se minhas expressões ditas, algumas vezes silenciosamente, para não influenciar os outros colegas de trabalho: “excelente”, “fantástico”, “maravilhoso”, “sensacional”, sem falar nos risos e gargalhadas, quando já não conseguia mais me conter. Sim, pois os contos de Nereu são curtos, rápidos e dinâmicos, temperados com doses de perspicácia, inteligência  e, o melhor, humor, cuja variação, deliciosamente, é apenas em grau. Vejam:

“...Feliz aniversário, o moço diz. Obrigada. Aproximam-se para que ele lhe dê um beijo. Obrigada.., e ela devolve-lhe o beijo. Continuaram assim pertinho, recolhidos um para o outro, protegidos por uma bolha invisível e única, hostis a toda violência, a toda aspereza das pancadas e chicoteadas do mundo de fora. Um outro beijo partilhado. Obrig... E mais Outro, ou talvez ainda o mesmo. Você tem os lábios tão doces, ela suspira. E eu gosto do seu nariz, o moço diz. Do meu nariz? Enquanto isso, o gelo das caipirinhas ia derretendo, os sanduíches iam esfriando, parte da cidade roncava na frente da televisão, a vela, o Correio Litorâneo, o pior jornal do planeta, ia mofando nos lares e escritórios da região. É, do seu nariz. E o moço beija-lhe o nariz. A garçonete, do balcão, de sagitário, observa os amantes, áries e aquário enrolando-se. Você acredita em signos, Portal?, pergunta a garçonete. Acredito...” (p.48);

“...Prefeito:

— Porra, Leitão (não há símbolos ou letras na tipografia atual que exprimam a estridência desse penúltimo grito).

Reação:

Uma melodia surda, às avessas, indicava, como o trovão indica a existência do relâmpago, que a trajetória habitual dos líquidos e vapores do meu ventre fora alterada.

Só há tempo para fechar a porta. Rápido, amigo! — disse, de novo, a mim mesmo.

Tlac.

Feito isso, um jato de vômito rompeu-me o focinho. Uma inundação.

Nunca minha alcunha encaixara-se com tanto ajuste como agora a essa minha atitude trágica e desfigurada. A meleca expandiu-se sobre a mesa recém ordenada. Imaginem, como quiserem, uma espécie de mapa-múndi onde a madeira escura do tampo da mesa representa os mares e oceanos, enquanto que o dinâmico vômito, de sua pangéia original, toma aos poucos o rumo do atual endereço que os continentes e ilhas ocupam no globo...” (p.38/39 – um riso sincero de 20 segundos)


P.S.: Procurem ler literatura de verdade, não essas “coisas” que algumas renomadas revistas tentam lhe empurrar goela abaixo, como se os leitores fossem um tipo exótico de lixeira. Seja um bom entendedor, fazendo com que os livros que você leu se sintam orgulhosos de terem lhe dado uma mãozinha.

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