“Eu não sei fazer poesia... Mas que se foda!!! Eu odeio gente chique eu não uso sapato... Mas que se foda!!!” – É assim o refrão da letra da música de Charlie Brown Jr, em “Não uso sapato”. Poesia? Talvez, e há quem discorde. Mas são versos sim, que, antes de rebeldia, indicam sinceridade e liberdade de expressão. Escritor que escreve para agradar é um charlatão. E a produção de quem escreve sob encomenda é um lixo e não pode ser enquadrada como “literatura”. Faço esta breve introdução para falar de Zeh Gustavo, em “A perspectiva do quase” (2008, Editora Arte Pau Brasil, 79 páginas): claro exemplo de exercício pleno de liberdade (mais uma vez): “Eu sou propriamente uma anormalia.” (in “Caderno de desapontamentos”, p.77).
Nas artes plásticas, muitos artistas só atingem sua maturidade depois de muitos anos, após superar todas as amarras que os prendem ao mundo formal, acadêmico, estilístico. O resultado é o que se vê por aí, sem chance de confusão. E então podemos identificar, facilmente ou não, obras finais de um Picasso, um Salvador Dalí, um Iberê Camargo. Claro que a verdadeira arte não é feita para agradar, nem que seja apenas aos olhos. A receptividade é mera conseqüência, seja boa ou ruim, e é sempre questionável. A verdadeira arte é para levantar polêmica, questionamentos, fazer pensar, induzir à reflexão. Sem isso, a arte perde o sentido, vira mero objeto decorativo. E, obviamente, uns irão gostar e outros odiar. E aí volto ao que disse anteriormente. Em “A perspectiva do quase”, há muito mais que maturidade literária, e Zeh Gustavo revela-se um escritor que já veio decidido a tudo, pronto para o que der e vier, e, agora, já está até passando: “Vou falar a verdade:/ Nunca gostei de poesia.” (in “Os dois estalos”, p.13).
Em “A perspectiva do quase”, Zeh Gustavo já antecipa um pouco do conteúdo do livro no próprio título. E, como bem diz o Aurélio: “perspectiva” é “a arte de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista”. E o “quase”? Bem, fica a critério do leitor, mas não há como fugir nem fazer de conta. E o leitor precavido deve se preparar para a leitura, “quase” como quem vai para a guerra; e, ainda assim, se surpreenderá: “Eu me habituei de estragar poesias./ De errado que eu, no meu hoje, me sinto capaz/ de esboçar o escrevimento de uma quase-poesia./ E aquele segundo estalo que eu tive/ creio não ter sido apenas um estalo: era um estilo.” (in “Os dois estalos”, p.14).
Zeh Gustavo não é apenas um artesão de palavras, ele as digere por faminta necessidade, ele corrompe criminosamente as palavras, sempre com suspeitas intenções (ainda bem que não há pena para este delito!); ele as destrói com o intuito de reciclá-las, fazer neologismos, alterar a semântica, inverter, virá-las do avesso, literalmente, e “quase” chega a um diagnóstico da sua estranha patologia: “e assim/ vou/ comendo/ minhas/ migalhas/ pelos antros/ da palavra” (p.15).
Zeh Gustavo até tem raros momentos de lucidez: “Começo a mudar meus pensamentos/ acerca da maturidade de ficar mais velho./ Creio exclusive que a maturidade/ pode ajudar a gente a atingir/ maiores crianços.” (p.18);
Em outros momentos, Zeh Gustavo “viaja”, ora descambando para a retórica filosófica, ora relativizando teoricamente a poesia, mas sem jamais perder o seu genuíno estilo: “os caracteres não têm caráter/ - a vida não é um monte de dados;/ o corpo precisa de estimulezas/ mais que de informatações;/ o meio só é o fim se houver infinitos;” (in “Programa de desgoverno”, p.19);
“Eu faço poesia-quase:/ solto frase abilolada para ajudar a prejudicar lirismos/ que se pretendam retos./ Só breco um poema para fins de embromá-lo/ em suas curvas de briga.” (in “Manifestim”, p.28);
“Pretendo ser desagradável./ Um dia almejo estar entre as maiores competências e lideranças/ no que concerne ao saber de palavras vãs.” (in “Canibal”, p.29).
Por fim, chego à conclusão que “A perspectiva do quase”, pouco importando se é perspectiva “cavaleira” ou “isométrica” (tecnicamente), não trata de “quase-poesia”, nem pode ser caracterizado como um “quase-livro”. O próprio autor (inteiro e não quase), Gustavo Dumas, busca se auto-interpretar e sabiamente declara: “O lirismo perspectivo do livro apresenta-se, pois, como um foco de resistência ante uma cultura urbana massificada e uma linguagem de mercado que diluem o eu e que partem da premissa da quantificação de tudo com vista à formatação contínua de um ávido onipresente supermercado global. É flor vermelha a sangrar a língua do discurso dominante.” (p. 79).
Zeh Gustavo é heterônimo de Gustavo Dumas, autor de “Idade do Zero” (2005) “Mito da origem do futebol” (Cone Sul, 1997), “O povo e o populacro” (Cone Sul, 1998) e “Solturas, balões e bolinhas de papel” (Damadá, 2001). Zeh Gustavo é natural do Estado do Rio de Janeiro, é também compositor e poeta.