quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Minicontando. Ana Mello



Sou assinante da Revista Aplauso há vários anos, uma maneira de manter-me atento à boa literatura, principalmente à literatura gaúcha. Na edição 101, página 49, na sua seção, o colunista Flávio Ilha fala sobre “Das entranhas da ótima literatura”, comentando o ótimo e novo trabalho de Carol Bensimon: “Sinuca embaixo d’água”; e, em seguida, sugere mais três bons livros recém lançados. Dentre estes, o livro de Ana Mello, “Minicontando”, e, referindo-se ao conteúdo, Flávio diz: “...100 pequenas histórias em que o truque é a sugestão – mais do que a dicção. Humor, amor e morte estão entre os temas dos contos...”. Tão logo li a pequena resenha sugestiva, entrei no blogue da autora e encomendei um livro, pedi autografado, com a certeza de conseguiria. E consegui, pois, em dois ou três dias, feliz da vida, eu estava com o livro em mãos.


Quando recebi o livro, interrompi minha leitura do Nobel Yasunari Kawabata, em “Contos da Palma da Mão”, e não perdi tempo. Desembrulhei o pacote e comecei a ler o livro de Ana Mello e, literalmente, não consegui largar. Como uma compulsão mesmo. Mas foi impossível não fazer um paralelo do livro que estava lendo, do japonês Kawabata, com o de Ana. O prêmio Nobel Yasunari Kawabata chamou-me a atenção, em “Contos da Palma da Mão”, justamente pelo seu poder de concisão, a escrita enxuta, sob medida, cujos textos se estendem, salvo raras exceções, por no máximo uma ou duas páginas. E a maioria dos textos de Kawabata foram, em sua maioria, escritos nas décadas de 1920 e 1930; ou seja, ele já escrevia desde aquela época, o tipo de texto que hoje é atualíssimo, ultra-moderno. Textos curtos que o leitor pode ler rapidamente, na frente de um monitor de computador sem se cansar. E aí chego nos minicontos de Ana Mello.


Já conhecia o trabalho da escritora Ana Mello, desde o tempo saudoso do extinto site Leia Livro, do Governo de São Paulo. Depois, pelo seu blogue (minicontosanamello.blogspot.com) e pelas suas crônicas na sua coluna semanal no site Sortimentos. Ou seja, experiência a escritora Ana Mello tem e de sobra. Só poderia ler coisa muito boa em “Minicontando” e, ainda assim, eu me surpreendi. Em seu livro de “estréia”, Ana Mello revela seu inato talento para a literatura, ou deveria acrescentar um “também” antes de literatura, pois sua área profissional é a ciência exata. Mas algo da sua formação profissional também se revela em seus textos, é a precisão vocabular, colocando cada palavra exatamente em seu lugar. Não dá para mudar, inverter, tentar distorcer, é aquilo mesmo, exatamente como deveria ser. Lembrou-me o trabalho milimétrico da escrita do argentino Jorge Luís Borges, que jamais colocava palavras avulsas ou soltas, principalmente na fase em que perdera a visão.


Pois bem, em “Minicontando”, Ana Mello exibe seu extraordinário poder de criação em algo no qual se tornou uma profissional: o miniconto. São textos curtos, às vezes curtíssimos, que revelam talvez o mínimo necessário, a compreensão é particularíssima, não havendo outro recurso ao leitor que não seja o de participar da história; seja naquele genuíno processo imaginativo de construir o tradicional filmezinho mental, ou ficar viajando ao imaginar uma provável continuação. E os leitores homens, provavelmente se identificarão muito com este:


“O muro é alto. Do outro lado, outro mundo. Com pitanga, laranja madura, goiaba. E a bola de futebol. A gurizada incentiva: vai, não desiste. Acelero no cinamomo e freio no cachorro do general.” (in “Muralhas da infância”)


Em outros, Ana Mello ruma para o anedótico, quando nos deparamos com algo que torna impossível não rir:


“Viúvo, 72 anos. Apaixonado pela vida e por Anita. Que morena! Tão bonita que não dava para acreditar que era somente sua. Por isso contestou a paternidade do menino. Mas o DNA foi implacável. Aceitou a pensão imposta pelo juiz sem reclamar. Sorriu feliz e pediu uma cópia do teste para exibir aos amigos.” (in “O lado bom da vida.”)


Ou então, nesta divertidíssima quase parábola:


“Clara tinha nove anos e foi fazer a catequese. Não sabia o que era pecado, um conceito que não existia na sua casa. Amar e cumprir deveres eram coisas naturais. Mas o padre exigiu a confissão, ninguém era livre de culpa. Clara então cometeu seu primeiro pecado – inventou alguns, para contentar o vigário.” (in “Confissão”)


E não seriam fábulas ou é apenas uma impressão minha?


“Os noticiários de todo o mundo comentaram a tentativa de salvamento. Um cão removeu outro cachorro que agonizava na rodovia, arriscando a própria vida. Para os seres humanos, isso pareceu surpreendente.” (in “Solidariedade”)


“Na iminência do terremoto, os sapos abandonaram a cidade. Muitos dos príncipes também desapareceram.” (in “Lapso fantástico”)


Sei, é bobagem minha tentar “enquadrar” os textos de Ana neste ou naquele estilo. Deixo isso para os chatérrimos teóricos literários de plantão. O mais importante de tudo é que o livro de Ana Mello é de leitura recomendada, uma experiência gratificante, sem contra-indicações, independente da idade do leitor. Claro que, quanto mais “exigente” o leitor, mais proveito irá tirar. Senão, o que dizer desta última gorjeta, um lado meio sádico da fabulosa Ana Mello. É por isso que eu quero morrer amigo desta incrível escritora:


“Quando avisaram do acidente fatal, Maria escondeu-se para rir de felicidade.” (in “Viuvez”)


Mais sobre a autora, acesse:
http://minicontosanamello.blogspot.com


“Minicontando”, de Ana Mello, foi publicado em 2009, pela Editora Casa Verde, Porto Alegre.






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