quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Aparição. Vergílio Ferreira


UMA OBRA-PRIMA: APARIÇÃO
Será este o melhor romance de Vergílio Ferreira? De certo modo, sim — pelo equilíbrio entre o romance, enquanto romance, e o romance, enquanto digressão reflexiva sobre o mistério da condição humana.
É possível que o romancista não comparta esse juízo. No entanto, assim há de pensar o público, que parece ter dado preferência a esta Aparição, entre as obras capitais do grande romancista português.
Um grande romancista, de obra numerosa e variada, é sempre um leque de opções para o seu leitor. Convém acentuar que Vergílio Ferreira tem esta singularidade: é antes para ser relido do que lido. Lido ao primeiro relance, não nos dará tudo quanto o seu livro contém. Relido, sim, e aos poucos, gradativamente, um pouco à maneira daquele Palha, no romance de Machado de Assis, apreciando tanto as rosas do jardim de Rubião, que era preciso tirá-lo de uma roseira para levá-lo a outra.
Aqui, torna-se necessário reler devagar, ajudados pelo tempo e o silêncio. Só assim teremos o romancista na plenitude de seus recursos de expressão e de emoção. Um exemplo? Leiam comigo este trecho do romance:
“Pela estrada fora, aberta entre a neve, os guizos do cavalo retinem alegremente. Uma claridade baça desce do céu imóvel com a promessa de mais neve. E para um olival distante gente escura canta. Fecho os olhos ainda, e escuto. É uma música antiga, da idade da terra, da idade do destino dos homens. Da amargura funda como os séculos, dos bilhões de sonhos consumidos pelas eras, ela vem até mim, essa canção de nada, abrindo no ar sobre a solidão do Inverno, com a mensagem de uma noite perene. Caminhamos agora por uma reta extensa. Passam à nossa beira camponeses escuros, um ou outro pedinte de viagem com a face das misérias bíblicas. Ao fundo, barrando o horizonte, rgue-se a montanha, que recua, vagarosa, liante de nós, como para nos atrair à sua verdade de gênese”.
A página prossegue no mesmo tom rretocável. Nada há ali para tirar ou acrescer. É pele de corpo apolíneo.
Todo o romance, na sua gradativa tesitura, no vigor de seu desfecho, na composição harmoniosa de suas figuras, tem a força e o acabamento da obra-prima, facilmente identificável no texto insusceptível de retoque. Como aprimorar Os Maias? ou o Dom Casmurro?
Aparição é romance dessa linhagem superior. E há de ser lido não como passatempo de fim de semana, e sim como obra conscientemente realizada, na plenitude da imaginação romanesca, sob a vigiância do mais exigente rigor crítico.
Vergílio Ferreira, não obstante a modernidade de sua obra, no sentido da adequação dessa obra ao nosso tempo, insere-se na melhor tradição do romance português. Tem raízes que descem profundamente ao seio da terra e aos arcanos da alma do povo, de tal modo que podemos identificar seus antepassados nas figuras patrimoniais desse romance. De Fernão Mendes Pinto a Eça de Queirós. De Bernardim Ribeiro a Raul Brandão. E com uma tal autonomia e uma tal originalidade que dele podemos dizer que soube construir uma obra romanesca que é também uma data e um marco no romance de língua portuguesa. Josué Montello.
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quanto anos, vencer a dureza dos dias, das idéias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo e tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira em que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos. Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo que nada estava escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face... (Vergílio Ferreira, in “Aparição”, Difel, 1983) - Grifos meus.

Vergílio Ferreira

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