terça-feira, 5 de março de 2019

Os Cavalinhos de Platiplanto. José J. Veiga

"Contos marcados por uma espécie de tranquilidade catastrófica"
Ontem pela manhã, terminei a leitura de meu quinto livro lido do ano. "Os Cavalinhos de Platiplanto", de José J. Veiga. Adoro a leitura inspiradora e rica de Veiga. Parece que, ao ler suas histórias, volto no tempo, eu me sinto um menino de novo. A literatura de qualidade tem disso também. É uma legítima, porém disfarçada, máquina do tempo. Há tanta informação, tanta magia e algo que me transforma, toda a vez em que leio um livro de José J. Veiga. Suas histórias são maravilhosas e, sei que é injusta a comparação, é como se ele fosse o nosso "Mark Twain", nosso "Jorge Luis Borges", nosso "Hans Christian Andersen", nosso "Tchecov", e tantos outros, num só escritor. Já coloquei em uma resenha que fiz sobre outro dos seus livros, que Veiga foi e continua sendo "mal-interpretado" por professores e outros supostos especialistas teóricos, que "rotulam" o escritor como "literatura-infanto-juvenil", e assim limitam seu alcance para outros leitores. É preconceituosa tal redução estilística. O universo das suas histórias é muito mais amplo, mais abrangente, quase terapêutico. Desafio aqui quem discordar, pois é de leitura obrigatória.

Bem, voltamos ao livro. Gostaria de transcrever aqui muitas das passagens que me emocionaram durante a leitura. Adoro quando, bem como nos filmes, a cena descrita me emociona a tal ponto de verterem lágrimas. E foi justamente no conto que dá nome ao livro: "Os Cavalinhos de Platiplanto". A atmosfera mágica de seus contos parte, quase sempre do cotidiano de cidades pacatas e pequenas do interior de qualquer região do Brasil.

No entanto, enquanto lemos, presos pela narrativa rica em detalhes, seja de um personagem, quase sempre um adolescente ou uma criança, de um momento ao outro da leitura, passamos, sem perceber, do real ao surreal, como num passe de mágica. É bem assim, pois, em diversos contos, interrompi a leitura para voltar e ver onde foi que eu me perdi. E o engraçado é que não é num parágrafo ou num capítulo em que isso se dá. É de repente, no meio de uma frase, ou no decorrer de um diálogo. E a história toma ares de fantástico, de realismo mágico, e o surreal assim perde grande parte do que poderia desestimular a leitura. Por desinformação, ou até incapacidade intelectual (perdoem-me a franqueza), sei que há muito preconceito a respeito de literatura fantástica, ou de realismo mágico.

Como navego na contramão, eu amo, adoro, este tipo de leitura e textos assim são enriquecedores, mais que desafiadores. O comportamento humano está sempre em constante situação de xeque, como numa partida de xadrez. Os personagens de Veiga são um prato cheio para estudos de psicologia. O absurdo é absorvido com tamanha naturalidade que não nos assustamos. E José J. Veiga ao lado de Murilo Rubião são os escritores brasileiros dos quais já li, senão todos, a maioria de seus livros. São muito inspiradores, uma fonte quase inesgotável de estudos. Dentre os livros de José J. Veiga, os meus preferidos são "Sombra de Reis Barbudos", "A hora dos ruminantes" e, agora, "Os Cavalinhos de Platiplanto", não necessariamente nesta ordem.

Enquanto leio Veiga, encontro lá algo que me tranquiliza, algo que corrobora meu modus-operandi de um “falso-adulto”, os personagens de suas histórias tem muito do meu jeito de pensar, refletir e ver a vida. Sinto-me um menino de novo e você não imagina como é boa esta sensação aos 54 anos. Dentro da gente, no nosso inconsciente, temos a idade que queremos ter. Então, eu poderia compartilhar aqui algumas das passagens que achei comoventes, porém, como encontrei num site, muitas passagens interessantes, vou colar aqui para que você, leitor, tire suas próprias conclusões. É claro que eu sei que não há nada como a nossa leitura dos livros. Então:

"O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram (...) A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me no espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o do meu pai. De repente fere-me a ideia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele a aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele."

"Quando eu chegava em casa à noite, cansado de correr, lutar ou simplesmente ficar sentado no patamar da igreja ouvindo histórias, encontrava a porta encostada, com uma pedra pesada escorando. Minha mãe estava ou no quarto rezando ou na varanda remendando minhas roupas, e o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência de meu pai, porque se eu acostumasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse. E acho que para não parecer que estivesse implicando mudava logo de assunto, dizia que tinha leite morno para mim na pedra do fogão, mas que não esquecesse de lavar os pés primeiro. (...) Deitado na cama, ouvindo minha mãe fazendo ainda uma coisa ou outra pela casa, catando feijão, moendo café para de manhã, eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é fácil, não dá nenhum trabalho, praticar depois é que é difícil, a gente vai deixando para depois e nunca resolve começar."

"E o manso velhinho continuava esperando, talvez já só pelo hábito, ou pela falta de ânimo de levantar-se para cuidar de outra coisa. Observei-lhe que muito ele devia ter perdido enquanto esteve sentado naquele banco esperando, aliás já bastante puído pelo roçar de seus braços e de suas costas; ele respondeu que exatamente por isso não tinha mais interesse em sair. (...) – Perdi a promessa e perdi a festa – disse suspirando. (...) O que isso queria dizer não fiquei sabendo, mas aquelas palavras, ditas com grande desconsolo, ficaram em meus ouvidos como expressão de total desilusionamento. (...) Pensando em dar-lhe uma compensação tardia, convidei-o a acompanhar-me numa visita à casa (...) Ele olhou-me com total indiferença e disse: – É melhor não. O ouro tem muita tara."

"Mas o delegado já tinha o seu plano e não precisava de sugestão de ninguém; ele apenas esperava que o prazo se esgotasse para tomar suas providências – e talvez até desejasse no íntimo que a ordem fosse desobedecida para ter uma ocasião de impor dramaticamente a sua autoridade. Quando ele consultou o relógio e disse que os sessenta minutos já haviam passado, a multidão automaticamente abriu um corredor entre ele e o poço, com certeza esperando que ele fosse descer pela corda e trazer o professor nas costas. Mas em vez de caminhar na direção do poço ele caminhou na direção da casa! Ninguém entendia mais nada. Então ele estava apenas brincando quando fez a intimação? É claro que o desapontamento do povo não vinha de nenhum desejo de preservar a autoridade, mas do receio de perder algum espetáculo, sensacional ou engraçado. (...) Quando o delegado voltou da sua caleche trazendo uma enorme casa de marimbondos na ponta de um galho de abacateiro, o povo criou alma nova. Era a prova de que uma autoridade experiente pensa melhor do que cem curiosos. Andando devagarinho para não balançar o galho, o delegado chegou à beira do poço e sem mais nenhum aviso soltou lá dentro o galho com os marimbondos."

"(...) descobri que, quando se derruba uma moeda em água corrente, não se deve pensar em recuperá-la. Quem tentar fazê-lo poderá ficar o resto da vida à beira da água retirando moedas. É como se a pessoa 'sangrasse' a areia do fundo da água e depois não conseguisse estancar o jorro de moedas. (...) Talvez eu não devesse ter contado isso a meu pai, pois não era difícil prever o que aconteceria. Ele riu em minha cara, e chamou-me fantasista. Como eu insistisse, ofendido, ele reptou-me a prová-lo. (...) aceitei o desafio, como se tratasse de um ponto de honra. Levei-o à beira de um córrego, mandei-o soltar uma moeda na água – e só à força conseguimos tirá-lo de lá dias depois; e para impedi-lo de voltar, tivemos de interná-lo. Disseram que a culpa foi minha, mas não consigo sentir-me culpado."

"(...) quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer. Por isso é que eu acho que a gente nunca devia querer as coisas de frente por mais que quisesse, e fazer de conta que só queria mais ou menos. Foi de tanto querer o cavalinho, e querer com força, que eu nunca cheguei a tê-lo." (negritei, pois esta passagem é inesquecível e reveladora...)

A edição do livro que li é de 2015, edição da foto acima, em capa dura. Obra de colecionador. Li em ângulo máximo de 90º para não danificar as costuras. Edição da Companhia das Letras, prefácio de Silvano Santiago.

O livro "Os Cavalinhos de Platiplanto" foi o primeiro livro de José J. Veiga, publicado em 1959, quando o autor contava com 45 anos de idade. 

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 José J. Veiga - folha de rosto do livro.

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