Ambígua, evidentemente. Livre, sem dúvida. Uma lenda,
seguramente. Tamara de Lempicka, la beile Polonaise, a vedeta do período
entre- -guerras, reunia em si tudo aquilo que simboliza a época em que viveu. Ou
melhor, o que caracteriza a elite da época, gente que frequentava o Ritz de
Paris ou o Grand Hôtel de Monte Carlo e que nos tempos actuais integraria
o chamado jet-set.
Ainda recentemente, o New York Times se referia a
ela como a «beldade de olhos de aço, a diva da era do automóvel». Na verdade, o
seu mais célebre quadro, a que deu o título de Auto-retrato de Tamara no Bugatti
Verde (ilust. p. 6), revela algo da relação que Tamara mantinha com as
máquinas, fossem elas feitas de aço ou de carne e osso...
Mulher-automóvel ou automóvel-mulher... onde começaria
uma e terminaria o outro? Que tipo de relação manteriam estas duas entidades uma
com a outra, e perante os homens? É difícil dizer ao certo. Levantar- se a
questão é equacionar a global ambivalência que a todo o momento perpassa e é
testemunhada por toda a obra de Tamara de Lempicka. E permanentemente nos
confrontamos com a desconcertante sensação de, julgando ter finalmente
desvendado o mistério, termos de voltar novamente ao princípio: é que os dados
de que dispunhamos eram falsos...
Na verdade, Tamara nunca possuiu nenhum Bugatti verde,
mas um simples Renault amarelo berrante! O que importa, afirmou certa
vez a pintora, é que «A minha toilette condizia sempre com o carro, e o
carro com o meu vestido».’
É fácil imaginar-se Tamara como a incontestada vencedora
de um concurso de elegância, saindo do automóvel e apresentar-se perante um júri
do qual poderiam fazer parte o Great Gatsby, Hemingway ou Coco Chanel e,
numa atitude de imensa superioridade, evoluir diante do veículo, segurando
negligentemente o boné de piloto com a mão.
Perfeita harmonia entre mulher e objecto, em que a
primeira era glorificada por um costureiro famoso, e o segundo ostentava o
emblema de um construtor consagrado! Seria de esperar uma interactividade entre
os dois elementos presentes neste quadro: a mulher a transformar-se em objecto,
numa sociedade como a nossa, fundada no conceito de posse... ao mesmo tempo que
o automovel surge como uma projecçao da potência viril do homem que o criou. A
carga simbólica subjacente é sublinhada através de elementos bem precisos: com
a cabeça protegida pelo boné, ao comando de um potente automóvel de 400 cavalos
de potência, a mulher — uma graciosa aparição envergando um elegante vestido
dos anos vinte — proclama, de certo modo, a sua subordinação a uma força
elementarmente expressa na impetuosidade do motor.
Tal interpretação, particularmente no caso de uma mulher
como Tamara, ignora o facto de que o automóvel é igualmente um símbolo da
emancipação feminina. A máquina encontra-se sob o poder da condutora, subjugada
à sua vontade, ora obedecendo aos seus mais excessivos caprichos, ora
resignando-se a que a sua dona a reduza à mais dócil das escravidões. É uma
Tamara de Lempicka plenamente segura de que pode dominar este símbolo de força
que é o motor do automóvel, utilizando-o, explorando-o como muito bem entender,
exclusivamente em seu proveito.
Podemos assim concluir que o relacionamento entre a nossa
heroína e o automóvel, tal como o que estabelece com os homens, e até com as
mulheres, é, no mínimo, algo suspeito. Uma atitude que jamais se liberta
completamente de um certo horror, entrevisto aliás por detrás de uma fachada
aparentemente imaculada. Serão os outros, pergunta-se ela, indiferentes ao seu
próprio sexo, à sua própria espécie? Serão eles seus aliados ou rivais? Não se
poderá mudar de feminino para masculino, e vice-versa, consoante se seja
cúmplice ou motorista, amante ou patroa, de acordo com o nosso grau de
feminilidade ou de masculinidade? No fim de contas, todos os seres humanos,
mulheres ou homens, são uma subtil mistura destas duas componentes.
Toda a vida e obra de Tamara de Lempicka se encontram
impregnadas por esta ambivalência subtil, reflectindo-a como que através de um
espelho distorcido. Não é por simples acaso que no seu Auto-retrato ela
surge ao volante de um automóvel. O carro funciona como uma preciosa peça de
maquinaria, como um simile do amor, susceptível em ambos os casos de trazer uma
salutar alternância à alma de um mortal ser humano.
Na verdade, Tamara sempre tirou o maior partido possível
desta ambivalência que se situa a meio caminho entre uma fórmula matemática e
um sortilégio. Mas, atenção: tal como todas as heroínas famosas — da Hadaly de
«A Futura Eva», a novela de Villiers de L’ Isle-Adam, à Copélia de E.T.A.
Hoffmann, da «Francine» de Descartes (essa formidável automação) às «máquinas
dos celibatários», caras à sensibilidade surrealista —, Tamara é tão capaz de
estrangular o seu adversário como de remeter o herói para um atormentado
desfecho, semelhante ao reservado a Prometeus. Ninguém toma impunemente
possessão dos deuses do Fogo e do Conhecimento apenas para fruir
voluptuosamente a vida, para desassossegar aqueles que se ama e se pinta.
Amante dócil ou meretriz coquette, fêmea obediente
ou animal feroz e encarniçado, tal como o seu duplo, o automóvel, Tamara tanto
pode conduzir os seus amantes, sejam eles homens ou mulheres, aos mais
gloriosos êxtases, evasões, libertações e esquecimentos, como de os fazer
embater contra uma árvore e infligir-lhes os mais medonhos padecimentos.
Com efeito, era
habitual outras mulheres, igualmente fascinadas pela relação simbiótica que se
estabelece entre condutora e automóvel, confessarem-lhe: «Você fica tão
maravilhosamente bem ao volante, que só por isso gostaria imenso de a
conhecer!..
Foi exactamente isso que se passou quando conheceu pela primeira vez a editora da revista alemã de moda Die Dame, que lhe solicitara o Auto-retrato para figurar na capa da sua publicação. Dali a pouco tempo a pintora tomava-se famosa, passando a ser vista como um paradigma da mulher moderna. À medida que o tempo ia passando, Tamara tomava-se o retrato vivo da sua época. A partir de então, a artista passa a ser identificada com o mundo das máquinas. O Hollywood Theatre chega mesmo a aproveitar o Auto-retrato para cartaz da peça «Tamara: A living Movie». Por seu lado, o Das Magazin compara Lempicka a uma bela Brunilde: ela e o seu automóvel incarnam a imagem de uma mulher simultaneamente voluptuosa e superior. Em 1973, o Auto-Journal saúda Tamara no Bugatti Verde como sendo o verdadeiro retrato da mulher emancipada, que sabe perfeitamente como conquistar tudo o que pretende. "De luvas e boné, ela surge-nos como uma beldade fria, desconcertante e inacessível. Perante esta imagem é impossivel negar-se que esta mulher é inteiramente livre!"
Acesse também: Tamara de Lempicka - The complet works.
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