quarta-feira, 27 de junho de 2012

Tamara de Lempicka 1898 - 1980


Ambígua, evidentemente. Livre, sem dúvida. Uma lenda, seguramente. Tamara de Lempicka, la beile Polonaise, a vedeta do período entre- -guerras, reunia em si tudo aquilo que simboliza a época em que viveu. Ou melhor, o que caracteriza a elite da época, gente que frequentava o Ritz de Paris ou o Grand Hôtel de Monte Carlo e que nos tempos actuais integraria o chamado jet-set. 

Ainda recentemente, o New York Times se referia a ela como a «beldade de olhos de aço, a diva da era do automóvel». Na verdade, o seu mais célebre quadro, a que deu o título de Auto-retrato de Tamara no Bugatti Verde (ilust. p. 6), revela algo da relação que Tamara mantinha com as máquinas, fossem elas feitas de aço ou de carne e osso... 

Mulher-automóvel ou automóvel-mulher... onde começaria uma e terminaria o outro? Que tipo de relação manteriam estas duas entidades uma com a outra, e perante os homens? É difícil dizer ao certo. Levantar- se a questão é equacionar a global ambivalência que a todo o momento perpassa e é testemunhada por toda a obra de Tamara de Lempicka. E permanentemente nos confrontamos com a desconcertante sensação de, julgando ter finalmente desvendado o mistério, termos de voltar novamente ao princípio: é que os dados de que dispunhamos eram falsos... 

Na verdade, Tamara nunca possuiu nenhum Bugatti verde, mas um simples Renault amarelo berrante! O que importa, afirmou certa vez a pintora, é que «A minha toilette condizia sempre com o carro, e o carro com o meu vestido».’ 

É fácil imaginar-se Tamara como a incontestada vencedora de um concurso de elegância, saindo do automóvel e apresentar-se perante um júri do qual poderiam fazer parte o Great Gatsby, Hemingway ou Coco Chanel e, numa atitude de imensa superioridade, evoluir diante do veículo, segurando negligentemente o boné de piloto com a mão. 

Perfeita harmonia entre mulher e objecto, em que a primeira era glorificada por um costureiro famoso, e o segundo ostentava o emblema de um construtor consagrado! Seria de esperar uma interactividade entre os dois elementos presentes neste quadro: a mulher a transformar-se em objecto, numa sociedade como a nossa, fundada no conceito de posse... ao mesmo tempo que o automovel surge como uma projecçao da potência viril do homem que o criou. A carga simbólica subjacente é sublinhada através de elementos bem precisos: com a cabeça protegida pelo boné, ao comando de um potente automóvel de 400 cavalos de potência, a mulher — uma graciosa aparição envergando um elegante vestido dos anos vinte — proclama, de certo modo, a sua subordinação a uma força elementarmente expressa na impetuosidade do motor. 

Tal interpretação, particularmente no caso de uma mulher como Tamara, ignora o facto de que o automóvel é igualmente um símbolo da emancipação feminina. A máquina encontra-se sob o poder da condutora, subjugada à sua vontade, ora obedecendo aos seus mais excessivos caprichos, ora resignando-se a que a sua dona a reduza à mais dócil das escravidões. É uma Tamara de Lempicka plenamente segura de que pode dominar este símbolo de força que é o motor do automóvel, utilizando-o, explorando-o como muito bem entender, exclusivamente em seu proveito. 

Podemos assim concluir que o relacionamento entre a nossa heroína e o automóvel, tal como o que estabelece com os homens, e até com as mulheres, é, no mínimo, algo suspeito. Uma atitude que jamais se liberta completamente de um certo horror, entrevisto aliás por detrás de uma fachada aparentemente imaculada. Serão os outros, pergunta-se ela, indiferentes ao seu próprio sexo, à sua própria espécie? Serão eles seus aliados ou rivais? Não se poderá mudar de feminino para masculino, e vice-versa, consoante se seja cúmplice ou motorista, amante ou patroa, de acordo com o nosso grau de feminilidade ou de masculinidade? No fim de contas, todos os seres humanos, mulheres ou homens, são uma subtil mistura destas duas componentes. 

Toda a vida e obra de Tamara de Lempicka se encontram impregnadas por esta ambivalência subtil, reflectindo-a como que através de um espelho distorcido. Não é por simples acaso que no seu Auto-retrato ela surge ao volante de um automóvel. O carro funciona como uma preciosa peça de maquinaria, como um simile do amor, susceptível em ambos os casos de trazer uma salutar alternância à alma de um mortal ser humano. 

Na verdade, Tamara sempre tirou o maior partido possível desta ambivalência que se situa a meio caminho entre uma fórmula matemática e um sortilégio. Mas, atenção: tal como todas as heroínas famosas — da Hadaly de «A Futura Eva», a novela de Villiers de L’ Isle-Adam, à Copélia de E.T.A. Hoffmann, da «Francine» de Descartes (essa formidável automação) às «máquinas dos celibatários», caras à sensibilidade surrealista —, Tamara é tão capaz de estrangular o seu adversário como de remeter o herói para um atormentado desfecho, semelhante ao reservado a Prometeus. Ninguém toma impunemente possessão dos deuses do Fogo e do Conhecimento apenas para fruir voluptuosamente a vida, para desassossegar aqueles que se ama e se pinta.

Amante dócil ou meretriz coquette, fêmea obediente ou animal feroz e encarniçado, tal como o seu duplo, o automóvel, Tamara tanto pode conduzir os seus amantes, sejam eles homens ou mulheres, aos mais gloriosos êxtases, evasões, libertações e esquecimentos, como de os fazer embater contra uma árvore e infligir-lhes os mais medonhos padecimentos.

Com efeito, era habitual outras mulheres, igualmente fascinadas pela relação simbiótica que se estabelece entre condutora e automóvel, confessarem-lhe: «Você fica tão maravilhosamente bem ao volante, que só por isso gostaria imenso de a conhecer!..

Foi exactamente isso que se passou quando conheceu pela primeira vez a editora da revista alemã de moda Die Dame, que lhe solicitara o Auto-retrato para figurar na capa da sua publicação. Dali a pouco tempo a pintora tomava-se famosa, passando a ser vista como um paradigma da mulher moderna. À medida que o tempo ia passando, Tamara tomava-se o retrato vivo da sua época. A partir de então, a artista passa a ser identificada com o mundo das máquinas. O Hollywood Theatre chega mesmo a aproveitar o Auto-retrato para cartaz da peça «Tamara: A living Movie». Por seu lado, o Das Magazin compara Lempicka a uma bela Brunilde: ela e o seu automóvel incarnam a imagem de uma mulher simultaneamente voluptuosa e superior. Em 1973, o Auto-Journal saúda Tamara no Bugatti Verde como sendo o verdadeiro retrato da mulher emancipada, que sabe perfeitamente como conquistar tudo o que pretende. "De luvas e boné, ela surge-nos como uma beldade fria, desconcertante e inacessível. Perante esta imagem é impossivel negar-se que esta mulher é inteiramente livre!"


 Acesse também: Tamara de Lempicka - The complet works.

Nenhum comentário:

Postar um comentário