"O não sabido e o sabido em psicanálise e literatura. Miriam Chinalli
Resenha do livro: “Educação sentimental em Proust”, de Philippe Willemart. Ateliê Editorial. Cotia, 2002.
"Uma princesa nasce extremamente bela na corte de um rei e de uma rainha de um país longínquo. Ao crescer, sua beleza atrai de tal forma os homens que Vênus, abandonada em seu templo e evidentemente enciumada, chama seu filho Eros, também conhecido como Cupido, e lhe pede para castigar Psique - é este o nome da princesa - casando-a com o mais feio de todos os homens" (p. 17). É com um resumo do mito grego de Psique que Willemart inicia sua bela obra. Esse mito inspirou Lacan (O Seminário, Livro 8. Rio de Janeiro, Zahar, 1992) na construção de seu conceito de alma ou sujeito, que sai em busca do desejo impossível do Outro. A alma, ou Psique, sofrendo à procura do seu bem-amado representa o inconsciente, simbolizado pelo longo caminho constituído dos obstáculos e das provas que Psique encontrará em seu percurso e que lhe permitirão reencontrar Eros.
A obra de Willemart nos mostra que a psicanálise aprendeu a conversar com as outras ciências desde que foi criada. Freud não se privou de fontes como a literatura, a medicina, a filosofia, a antropologia, etc. Também Lacan não deixou de beber nas fontes da lingüística, da filosofia, da matemática, da lógica, da topologia, da literatura, etc. Esses fundadores não paravam de consultar outros campos do saber e, como é comum aos psicanalistas que escrevem, a interdisciplinaridade é até hoje prática costumeira e necessária.
Utilizando o referencial da psicanálise, Willemart examina algumas passagens de O caminho de Guermantes. Afirma: "detectando um saber impensado no narrador proustiano, procurarei Eros à minha maneira" (p. 18).
O título da obra, que traz uma referência explícita ao romance de Flaubert, Educação sentimental, sublinha a filiação flaubertiana de Proust. Denuncia, ao mesmo tempo, a falta de originalidade dos livros de auto-ajuda, criados à sombra da literatura, sem nunca conceder às grandes obras algum crédito.
O inconsciente genético
Na introdução, Willemart examina as diferenças entre "inconsciente estético", definido por Jacques Rancière (L'inconscient esthétique. Paris, Galilée, 2000), o "inconsciente do texto", conceituado pelo crítico literário Jean Bellemin-Noël (em 1971), pelo psicanalista André Green (em 1973) e pelo escritor Bernard Pingaud (em 1976) e o "inconsciente genético", conceituado por ele nos anos 80.
Em Littérature 52 (Paris, Larousse, 1983), Willemart prolonga e reforça o conceito de "inconsciente do texto", entendido como trabalho do inconsciente numa visão lacaniana: "Em primeiro lugar, o autor não é uma mônada isolada que pudesse reivindicar o que ele produz como sendo algo exclusivamente seu; como qualquer homem, ele é a culminação de uma série de desejos de sucessivas gerações, o fruto de um momento cultural preciso. Em segundo lugar, ele utiliza uma língua carregada de sentidos que o domina e controla mais do que ele pensa. E, por fim, essa mesma língua, uma vez colocada no papel e através da narrativa, força arranjos e desloca elementos tanto no nível do sintagma quanto do paradigma" (p. 19).
A partir dos anos 80, Willemart e outros críticos literários já não vão afirmar, como Freud, que a escritura é uma forma de expressão das pulsões ou do desejo do artista. A literatura ou qualquer outra forma de arte define um contexto ou um Simbólico no qual o artista entra e é moldado. O material escolhido - a pedra, a linguagem, os sons, as cores - também cumpre uma função e trabalha o escultor, o escritor, o músico ou o pintor. Dessa forma, a escritura fornece ao leitor não apenas as fantasias do escritor, mas muito mais as de seus contemporâneos e o Simbólico em que todos estão imersos. Assim, a função da arte não é a de nos fazer entrever o inconsciente do artista. Toda obra de arte que responde ao nosso Imaginário é capaz de trabalhar o Simbólico em que estamos inseridos e modificar nossa relação com o Real. Assim nasce o "inconsciente genético", objeto de estudo de Willemart - que busca revelar o inconsciente no nascimento e nas etapas de construção de uma obra de arte.
A caminho de Guermantes
No Prefácio, Walnice Nogueira Galvão chama a atenção para a importância e a beleza da obra de Proust e sobre a escassez de estudos sobre ela: "Já entre nós, nem somos capazes de precisar há quanto tempo não se escreve um livro inteiro sobre Proust. Estaríamos agora assistindo aos primeiros sinais de uma ressurreição? (...) E, se assim for, de qualquer modo nós os fãs temos que agradecer a Philippe Willemart por nos trazer Proust redivivo" (p. 15).
Analisando, sob a luz das teorias de Freud e Lacan, algumas passagens de O Caminho de Guermantes, Willemart parte da questão: "Qual a mitologia que brota da obra proustiana?" (p. 33).
Como exemplo, no capítulo "A derrota do pensamento ou a doença da avó" (p. 91), Willemart tece uma interessante rede de saberes a partir da seguinte citação de Proust: "Subi e encontrei pior a minha avó. Desde algum tempo, sem saber ao certo o que tinha, andava a queixar-se de seu estado de saúde. Na doença é que descobrimos que não vivemos sozinhos, mas sim encadeados a um ser de um reino diferente, de que nos separam abismos, que não nos conhece e pelo qual é impossível fazer-nos compreender: o nosso corpo. Qualquer assaltante que encontramos numa estrada, talvez consigamos torná-lo sensível ao seu interesse particular, senão à nossa desgraça. Mas pedir compaixão a nosso corpo é discorrer diante de um polvo, para quem as nossas palavras não podem ter mais sentido que o rumor das águas, e com o qual ficaríamos cheios de horror de ser obrigados a viver" (Caminho de Guermantes).
Em sua análise dessa reflexão do narrador proustiano, Willemart problematiza: "Quem é esse 'eu' que fala e se opõe ao corpo ao qual estamos encadeados? Com a idade ajudando de fato, nosso corpo parece não mais nos pertencer no sentido de que não responde mais a nossas vontades e nos obriga a pensar nele com um pouco mais de freqüência. É então que somos confrontados não só com a velhice, mas com a mecânica do corpo que, tal como um polvo, não leva absolutamente em conta o que dizemos. Se a educação física, o treino nos esportes e todas as ginásticas inventadas até este dia nos dão a ilusão de podermos controlar ou até modificar nosso corpo, a doença e a idade logo nos lembram que a ordem interna do corpo pouco nos pertence. Será esta outra derrota do homem depois das de sua expulsão do centro do Universo (Copérnico), do centro da estrutura psíquica (Freud), do centro da economia (Marx) e da linguagem (Lacan)?" (p. 92).
O estudo de Proust a partir de Freud e Lacan
"A psicanálise nasceu no dia em que Freud compreendeu o vínculo entre esse saber não sabido e o sofrimento do analisando ou entre um pensamento não pensado e um agir" (p. 23). Freud esboçou sua primeira descrição do aparelho psíquico e do inconsciente nos anos 1896-1900, reformulando-a depois em 1920, constatando a força da repetição e da pulsão de morte. Lacan, retomou as três categorias de Freud -- o Eu, o Supereu e o Isso - e as ampliou, permitindo assim uma compreensão maior do psiquismo, das artes e da literatura.
A obra de Willemart retoma as três categorias do inconsciente: o Real, o Imaginário e o Simbólico e nos mostra como essas descobertas são visíveis no texto literário. O Real é captado na ficção, na escritura rascunhada, rasurada e recomeçada. É na língua usada que o Real (o impossível de ser dito) se manifesta. O crítico literário, usando a teoria psicanalítica, anuncia o pedaço de Real com que o escritor ou o poeta trabalha. Depois, situando a obra no seu contexto histórico, na corrente das idéias e das mentalidades, na história da retórica e das figuras de estilos, descobre em qual Simbólico a obra se insere.
De acordo com Willemart -- em palestra proferida no Curso de Extensão intitulado "Literatura e Psicanálise", organizado por Cleusa Rios P. Passos, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo, em 9/11/1998 --, o Imaginário é o registro que unifica as partes dispersas, exercendo a pulsão de amor ou de união, dando e organizando sentidos, estabelecendo a coerência da narrativa ou da poesia. Essa instância, portanto, separa, rejeita, se distancia de outras visões do mundo e da tradição literária ou filosófica e valoriza o novo no texto. Por isso, o leitor dos 75 Cadernos de rascunhos de Proust tem muitas vezes uma impressão de trechos sem lógica e de páginas sem conexões e, no entanto, Proust nos deu o melhor romance da literatura francesa do século XX. É o registro do Imaginário que, separando ou reunindo os fólios, trabalhou durante a escritura dos rascunhos para oferecer ao público esse grande romance.
Em Proust, poeta e psicanalista (Cotia, Ateliê Editorial, 2000), Willemart também trata dos processos de criação literária (do Proust poeta) e do conhecimento do homem (do Proust psicanalista). Nesse ensaio, constatamos até que ponto o narrador proustiano, situando-se no campo dos três registros lacanianos, tenta remover o Simbólico para penetrar no Real pelo Imaginário inventado.
Willemart, o psicanalista que escreve
"Gosto de escrever e de ler. Escrever não é um ato premeditado, mas uma ação que movimenta a mente e a obriga a traduzir na língua portuguesa ou francesa o que já está organizado ou que está em fase de organização, sem a participação consciente do escritor. Ler é o meio de alimentar a mente. Se seguirmos o esquema freudiano na Interpretação dos sonhos, o material fica retido no inconsciente, entra no pensamento, ordena-se e, se for chamado, aparece na página, sabendo no entanto que, no embate com a linguagem, o já escrito e o contexto imediato, a idéia sofre transformações às vezes essenciais, para enfim produzir uma palavra, uma linha, um parágrafo que ainda pode sofrer rasuras até a elaboração de artigos e de livros", afirmou Willemart numa aula de pós-graduação na Universidade de São Paulo, em que tive o prazer e a honra de ser aluna ouvinte no último semestre de 2002.
Belga, naturalizado brasileiro, Willemart, de formação psicanalítica, também dirige o Laboratório do Manuscrito Literário, ligado ao Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG), em que são estudados autores como Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Milton Hatoum, Ignácio de Loyola Brandão, Flaubert, Balzac, entre outros.
Sua obra, sempre dedicada a desvendar o não sabido em literatura e em psicanálise, compõe-se de inúmeros livros e artigos publicados no Brasil e na França.
Psicanalista e editora assistente de literatura infanto-juvenil"
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