Que “Kunta Kinte”, que nada! A história de “Amistad”, então, foi fichinha. Não adianta negar: somos sim, também. Como em todo o mundo “civilizado”, no Brasil não é diferente. O racismo é cultural no Brasil, por mais que se diga o contrário. Na primeira oportunidade, lá está aquela vozinha do “lado mau” dizendo: “negrinho nojento”, “preto feio”, “negrada”, ou disfarçadamente, “bugrada”. Muitas vezes, rir é o melhor negócio para não perdermos “aquele” amigo, tão simpático (e tão racista), que anima as festinhas da turma. Por sua origem histórica, nossa sociedade tão miscigenada poderia ser menos “preconceituosa”, mas é tanto quanto ou mais que a norte-americana. Não importa muito a palavra empregada. Racismo, discriminação, preconceito, injúria verbal, ou qualquer outro “termo” que alguns eruditos contemporâneos tenham “criado” para minimizar uma prática tão corriqueira, que muitos chegam hoje a enquadrá-la, equivocadamente, como crime hediondo. Mas não importa muito o tipo penal, e sim suas causas e consequências psicológicas. E não adianta “se justificar”, tentando disfarçar no discurso a carga de preconceito cultural recebida de gerações. Não adianta dizer que chamar alguém de “alemãozinho” ou de “negrinho” é a mesma coisa. O Brasil é visto no exterior como um país de negros (miscigenados ou não). Se não percebem, até jogadoras de futebol de salão feminino, brasileiras descendentes de italianos, sem nadica de nada de sangue africano, de pele mais branca que as italianas, contratadas por uma equipe local para representar a Itália num Campeonado Mundial, foram chamadas de “macacas” pelos próprios italianos. Vai entender algo assim. É no futebol, ou durante a novela das oito, na conversa entre amigos, na festinha depois da 10ª cervejinha, sabe aquele rol de piadinhas divertidíssimas sobre negros? Pois é, está aí, em todo o canto deste Brasilzão sem preconceito. E ainda tem gente que é contra “as cotas para negros nas universidades”. Com a abolição da escravatura, os negros ficaram à própria sorte (e vejam que sorte!). Sem ter para onde ir, foram se amontoando nas periferias das cidades, formando mão de obra barata, sem alfabetização e morando em favelas. “Ah, então foi assim que surgiram as favelas? Sempre achei que os negros morassem em favelas porque gostassem de morar amontoados em morros.” (Não se espante se alguma criança falar isso para você). Trata-se de um resgate histórico da própria sociedade brasileira para com aqueles que realmente “criaram” e formam hoje a quase totalidade da nação. Mas tem gente que só gosta de negro, quando joga futebol bem e faz gol, dando a vitória para seu time. Se for vendido, mandado embora, ou jogar mal: “não passa de um negro!”. Quanto aos imigrantes europeus e asiáticos, bem, aí é outra história, a política foi “incentivada” e totalmente inversa. Ah! Desculpem-me, mas acho que isso não aparece nos livros de história do Brasil.
A “Era da Escravidão” é um livro composto de vários artigos publicados sobre o assunto pela Revista de História da Biblioteca Nacional desde 2005. Está sendo vendido em bancas de revistas, livrarias e papelarias. R$14,00. Um retrato nu e cru da realidade vivida pelos negros no Brasil pré e pós abolição. De lá para cá, sim, acho que houve alguma evolução, mas poderia ser melhor. Muito melhor. Quem sabe as cotas não ajudem a acelerar o processo.
“Em 25 de março de 1854, o subdelegado da freguesia de Santo Antônio, na cidade de Salvador, prendeu o escravo Luiz, fugido do poder de seu senhor Antonio Montinho, morador da cidade de Santo Amaro. Motivo: o senhor não queria atender ao pedido do escravo para que o vendesse, pois não queria mais servi-lo. Com o fracasso da fuga, Luiz ameaçou enforcar-se, caso tivesse que voltar para o domínio do seu dono. O subdelegado resolveu, então, mandá-lo para a Casa de Correção enquanto esperava Antonio Montinho decidir se o vendia ou não.
Dez anos depois, a africana Camila, 30 anos, escrava dos também africanos Domingos e Guilhermina, moradores na freguesia do Pilar, em Salvador, tentou se afogar com seu filho Marcos, de apenas cinco meses, no Dique do Tororó. Salvos por pessoas que passavam pelo local, foram conduzidos à presença do subdelegado da freguesia, a quem Camila revelou que desejava se livrar dos maus-tratos dos seus senhores e dos serviços que exigiam que realizasse sem que ela tivesse condições de atendê-los. Chamado à delegacia, Domingos foi aconselhado a vender mãe e filho. O medo de perder o patrimônio foi decisivo para que os senhores os pusessem à venda.” (in “Desta para melhor”, por Jackson Ferreira, p.13)
“Em 1889, um grupo de libertos da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, endereçou a Rui Barbosa uma carta na qual exigia instrução pública para seus filhos. Vivia-se um período delicado; a escravidão fora extinta havia pouco tempo, e a Monarquia estava em colapso. Os signatários da carta se declaravam republicanos e diziam que foram eles, os ex-escravos, e não a família real, os autores da abolição. Esta declaração de protagonismo não agradava a Rui Barbosa (1849-1923) e a outros emancipacionistas mais conservadores, para quem a abolição era um problema nacional que tinha sido resolvido pelos ‘cidadãos’, os ‘homens esclarecidos’, categorias que não incluíam escravos e libertos.
Mas nem de longe o fim de escravidão foi algo decidido e encaminhado apenas pelos senhores brancos e doutores do Império. Desde que aqui aportaram os primeiros tumbeiros, as autoridades policiais e políticas eram sobressaltadas por fugas e insurreições escravas a comprometerem, dia após dia, os negócios, o sossego e a autoridade senhorial.” (in “Cor que faz a diferença”, por Wlamyra R. De Albuquerque, p. 91)
“Não basta ser livre, é preciso parecer livre. Este era o desafio dos negros nascidos livres ou que recebiam a alforria na segunda metade do século XIX. Para abrir caminho naquela sociedade exigente, competitiva e racista, e se fazerem aceitos ou, ao menos, tolerados, precisavam construir a sua imagem a partir de comportamentos tomados “emprestados” dos ditos brancos.
Em geral, copiava-se o modo de vestir, pentear e posar — ítens que, por sua vez, seguiam a moda europeia vigente. Os recentes estúdios fotográficos, que se espalhavam pelas várias cidades, eram o meio de documentar e disseminar esta nova imagem, associada a ideias de distinção, erudição, riqueza e liberdade. Ou até mesmo de escravidão.
As cenas construídas em estúdios, com os símbolos que expunham, eram ‘narrativas’, mensagens facilmente entendidas pelos parentes e amigos que recebiam os retratos dos entes queridos ou dos conhecidos. Os retratos deviam deixar explícita a posição que a pessoa ocupava, ou que pretendia demonstrar que ocupava. Apesar de se tratarem de cenas ‘construídas’, ou por isso mesmo, costumavam deixar claro o papel de cada um.” (in “O valor da aparência”, de Sandra Sofia Machado Koutsoukos, p. 79)
“Longe do que se poderia esperar, a língua portuguesa, mesmo na capital do Império, nem sempre era a mais ouvida nas ruas. Conservar a língua materna era crucial para os africanos, pois significava manter o conhecimento que tinham do mundo, sua forma de olhar e sentir, sua identidade cultural.
Fugiu, no dia 26 do passado, um moleque de nome Joaquim, nação Cabinda, estatura alta, fala bem e passa por crioulo, tem uma ferida na canela da perna direita, levou vestido calça de riscado azul e camisa de algodão americano; quem achar ou der notícias na rua da Misericórdia n. 82, será recompensado.” (Diário do Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1845)”. Com essas palavras, um proprietário noticiava a fuga de seu escravo, entre menino e jovem, o qual, embora nascido na África, de ‘nação Cabinda’, falava tão “bem” que podia ser confundido com um crioulo (termo que designa o escravo nascido no Brasil, diferentemente do escravo ‘de nação’, proveniente da África). Apesar de uma ferida na perna, havia fugido fazia alguns dias. Joaquim pode ter sido recuperado por seu proprietário, como pode também ter encontrado um outro ‘moleque’ africano chamado Tobias, descrito como ‘Inhambane, estatura regular, corpo fino, retinto, olhos grandes, beiços vermelhos’, que escapara de seu dono poucos dias depois.” (in “Línguas Malditas”, por Ivana Stolze, p. 71)
“A formação de grupos de escravos fugitivos se deu em toda parte do Novo Mundo onde houve escravidão. No Brasil, esses grupos foram chamados de quilombos ou de mocambos. Alguns conseguiram reunir centenas de pessoas. O grande quilombo dos Palmares, na verdade uma federação de vários agrupamentos, tinha uma população de alguns milhares de almas, embora, pro- vavelmente, não os quinze, vinte e até trinta mil habitantes que alguns contemporâneos disseram ter.
Depois de Palmares, os escravos não conseguiram reproduzir, no Brasil, qualquer coisa parecida. Os senhores e governantes coloniais cuidariam para que o estrago não se repetisse. Foi criado o posto de capitão do mato (também conhecido como capitão de entrada e assalto, e outros termos), instituição disseminada por toda a Colônia como milícia especializada na caça aos escravos fugidos e na destruição de quilombos. Assombrada com as dimensões de Palmares, a Metrópole lusitana procurou combater os quilombos no nascedouro. No século XVIII, quilombo já era definido como ajuntamento de cinco ou mais negros fugidos, arranchados em local despovoado. Essa definição, concebida para melhor controlar as fugas, terminou por agigantar o fenômeno aos olhos de seus contemporâneos e, posteriormente, de historiadores.” (in “Ameaça Negra”, de João José Reis, p. 20)
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