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sábado, 3 de setembro de 2011

Cevando o Mate. Glênio Fagundes

Cevar. Segundo o dicionário Aurélio é: "Bras. RS. Pôr (o mate em pó) na cuia ou porongo, onde já está a bombilha com um pouco de água fria, o bastante para o empastar, servindo-se então com água fervente."
É, até parece simples, mas não é. Cevar o mate (que é sinônimo de Chimarrão, no Rio Grande do Sul) e sorvê-lo (não se trata de soberba) é realmente uma "ARTE". Para que entendam melhor, é bem assim como se aprecia um bom vinho. Beber chimarrão é mais que um hábito, um gosto ou preferência, é um ritual, é uma tradição que supera o mero prazer do deleite. Além de saudável comprovadamente, requer algo inconsciente. Envolve conhecimento, respeito, séculos de tradição que, não por acaso, se preserva tão profundamente na alma do verdadeiro gaúcho.
Por exemplo, o chimarrão preparado no Rio Grande difere um pouco do preparado, do ponto de vista estético da cuia, da bomba e da colocação da erva na cuia em Santa Catarina e Paraná. E é muito diferente do "mate" argentino, o qual é feito praticamente com folhas moídas, dando um sabor mais amargo e forte ao líquido, que é apenas disposto na cuia (mais pequena e sem pescoço) e sobre ela é colocada a água. E não se confunde com o tererê paraguaio, que também é feito com folhas moídas e bebido com água fria.
Já no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, o chimarrão é preparado com um composto de folhas e galhos moídos bem finos, dando a consistência de pó, tal como o café. A erva-mate é disposta de tal forma que uma parte da cuia é erva e a outra para a água e, na medida em que se sorve (bebe) pode se tornar mais suave ou, para quem gosta de mais amargor, pode-se ir derramando a erva do morrinho que se forma, por sobre a água para dar mais consistência ao líquido.  E por aí vai a cultura do chimarrão que pode envolver o ritual da roda de amigos, a forma de beber, o momento, o clima, os vários tipos de erva-mate, cuja qualidade pode requerer a observação da marca, da safra, da época da colheita, da forma de moer, da forma de sapecar (desidratar), etc.
Eu sou um apreciador de chimarrão, pois tenho por hábito prepará-lo duas vezes por dia, pela manhã e à tardinha. Além disso sou um pesquisador de qualidade de erva e mudo constantemente de marca de erva-mate em razão das grandes diferenças entre as ervas, fruto do longo processo de preparação e dos fatores climáticos. Além disso, coleciono cuias, as quais tem uma vida útil limitada, proporcional ao uso. Cuias muito velhas ou usadas interferem na qualidade do chimarrão. As cuias de porongo são as que fazem os melhores mates, por isso são as mais comuns.
A seguir algumas passagens do livro de Glênio Fagundes. Cevando o Mate é um verdadeiro compêndio sobre o assunto, falando desde o aspecto histórico, bem como dos equipamentos, forma de preparação e outros detalhes muito importantes sobre esta arte secular do gaúcho.
"Foi no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e trinta e quatro, entre os rios Ibicuí e Cacequi, no povoado deste último nome, então de poucos fogões. Hoje é cidade. Ali, num princípio de outono, com restos de verão antigo, brotou Glênio Fagundes, à beira de uma sanga.
Era um salso-chorão mal emplumado, quando um grilo guitarreiro se aquerenciou entre as folhas. Por lá já andava um vagalume matreiro, com sua lanterninha atada nos tentos. À luz humilde do bichinho quieto, o grilo boêmio ensinou-lhe as primeiras notas. Mas só falava das coisas noturnas: da lua no poço, das estrelas no açude e das aragens mensageiras de ausências.
Um dia veio uma cigarra de canto tempor5o, falando de retoços à luz do sol. Mas foi com a chegada de um louva-adeus peregrino que fundaram uma aldeia sem pedir licença ao Glênio. Com ritos e tudo, pois o louva-a-deus era um monge disfarçado que converteu o grilo, a cigarra e o Glênio. Todos eram teatinos. Falavam do céu e da terra. O salso-chorão crescia assim. Até que uma gralha picaça veio falar dos homens e do brilho que eles tinham. O Glênio passou a cismar debruçando a melena verde no murmúrio cristalino da sanga. E quis ser gente.
Tanto incomodou, que o louva-a-deus misterioso fez-lhe a vontade. Transformou-o em guri, mas nâ’o tirou-lhe as raízes. E o piá passou a viver entre cavalos e cachorros, sem nunca abandonar a viola, presente do compadre grilo. Sem esquecer as cantigas da cirra, nem as lições do sábio louva-a-deus. Assim, impregnado de céu, veio à cidade um dia, para o meio dos homens. Maneou-se e nunca mais pôde voltar. Passou a viver das raízes que buscam seiva na terra. E a seiva era tanta, que chamou uns companheiros para reparti-la. Eram todos sem dono e sem ajuste.
E o Glénio fez Os Teatinos, com coisas de grilo e cigarra e as bênçãos do louva-a-deus rezador. Por isso seu canto é reza, porque eles cantam, rezando, a querência para a desquerência dos homens. Há vinte anos, se
não me falha a memória.
Mas só cantar não bastava para regar as raízes. Fez-se poeta, e que poeta! Desenhista, tecelão e outros mistérios terrunhos. Agora escreve. Sua madrigueira é um templo.
Cevando o mate após mate, vai sorvendo o próprio pago no amargo doce que lhe vem da cuia. É um ritual permanente. Tão impregnado ficou desta imposição telúrica, que mergulhou na sua história. Do que aprendeu, ele nos dá a essência. E o faz Cevando Mate.  Por Glaucus Saraiva. (Orelhas do livro)
BREVES PALAVRAS
Três foram as intenções fundamentais que nortearam este trabalho telúrico:
1 — Conscientizar os valores reais da IIex paraguariensis ou IIex mate, esclarecendo aspectos os mais variados sobre este hábito, tão salutar, tão tradicional e tão nosso.
2 — Preencher a ausência de informações objetivas,  com ilustrações simples, de cunho essencialmente didático.
3 — Comprovar o alto valor cultural que representa o enriquecimento de uma cultura própria. Vivemos uma época em que se faz necessário um cuidado todo especial na preservação do patrimônio cultural, pois a era das comunicações, com toda sua potencialidade, em que pese os enormes benefícios que propicia à humanidade, pode em pouco tempo descaracterizar as culturas que não estejam preparadas para sua conservação. Nossas autoridades, que há muito vêm se interessando pela cultura gaúcha, não só como patrimônio cultural, mas também como fonte de renda através do turismo, poderiam viabilizar a criação de uma disciplina, que, incorporada ao currículo escolar, proporcionasse ao jovem de hoje o conhecimento dos anseios que forjaram esta terra telúrica.

Assim, o jovem, no contato com outras formas de cultura, saberia enriquecer seu patrimônio cultural, sem correr o risco de, desavisadamente, aceitar o que lhe fosse impresso,  levando-o, muitas vezes, a ser um estranho em seu próprio meio ambiente. E, o que é pior, repudiando sua própria cultura.  

Resta-nos agradecer aos patrocinadores pelo constante apoio aos mais caros anseios telúricos desta terra, incentivando e propiciando a divulgação dos mais  variados ângulos de nossa cultura." (Prefácio)






Glênio Fagundes

 
 
ISBN 858518664 Autor Glênio Fagundes
Formato:14x21cm - 140 págs. Peso:0,150 Ano:1995
Cevando Mate - No Rumo de Uma Cultura Própria

ISBN:858518664X
EAN/ISBN-13:9788585186647
DÉCIMA EDIÇÃO
Editora Rígel & LivrosBrasil
DISPONÍVEL

Guia para os amantes do chimarrão, ensaio histórico ou antropológico, reunião causos e lendas,este livro e seu autor já se tornaram tão folclóricos quanto o próprio mate gaúcho. desde tipos de cuia e bomba até receitas e propriedades químicas ou terapêuticas da erva, aqui dá para encontrar de tudo um pouco. Um verdadeiro clássico riograndense, para ler e aguardar a vez na roda.

Valor: R$ 19,00

http://www.livrosbrasil.com.br/_loja_exibir_produto.asp?art_no=858518664

http://www.livrosbrasil.com.br/Editora-Rigel/Dicas/Roncar-a-Cuia.html

domingo, 18 de abril de 2010

Bento Gonçalves - O herói ladrão. Tau Golin


“Quer fazer bem? Então, faça você mesmo!” – Ou algo assim, com sutis variações. O jargão serve também para leitura: ler criticamente e tirar suas próprias conclusões. É quase uma obrigação do “bom leitor”. É por isso que muitos consideram certos “tipos” de livros como sub-literários, pois sequer permitem ao leitor fazer crítica, quanto mais tirar conclusões: entenda-se “auto-ajuda”, “esoterismo”, “psicografia”. Todos já deviam saber que a história que nos é passada de gerações, em 99% dos casos, contém a versão do vencedor. Unilateral e sempre entendida como “verdadeira”. Foi assim com os milhares de filmes que abordaram a II Grande Guerra, e não seria diferente aqui no Brasil, nos poucos e raros eventos bélicos que tivemos. Tanta passividade tem seu ônus, não adianta arranjar desculpas. A estratégia sempre foi suprimir radicalmente com opositores, revoltosos e simpatizantes. A tão heróica e brava “revolução” farroupilha não foi diferente. Por detrás da famosa “questão do charque”, muito provavelmente, havia interesses muito mais sérios em jogo: a escravatura, a preservação da oligarquia, a expansão do latifúndio e outros. A independência, propriamente, do Rio Grande do Sul (com a interessante e  muito bem-vinda anexação de Santa Catarina) talvez tenha sido o interesse de menor importância. Mas não pretendo pisar em terreno minado, deixo o assunto para quem entende, ou deveria entender, melhor que nós leitores: os historiadores. A mim, humilde leitor, cabe a responsabilidade de ler, com senso crítico, e tirar, como já disse, minhas próprias conclusões. Aqui não faço apologia a nada, apenas divulgo boas e interessantes leituras. Mas sei que há gente que é adepta de “cortar o mal pela raiz”. Fazer o quê?

“Bento Gonçalves – O herói ladrão”, foi escrito em 1983, pelo então estudante Tau Golin. Um livro polêmico até hoje. Edição esgotada. Os exemplares que não foram “queimados em praça pública” (vide “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury) ou usados para acender fogões à lenha, ainda podem ser encontrados em sebos espalhados pelas maiores cidades do Rio Grande do Sul. O escritor hoje  é Doutor em História e professor da Universidade de Passo Fundo, continua sendo “persona non grata” pelos tradicionalistas gaúchos. O autor publicou também “A ideologia do gauchismo” e hoje milita (não tão solitário) numa verdadeira cruzada contra o Tradicionalismo Gaúcho.

Como gaúcho, não pretendo entrar no mérito ideológico da obra de Tau Golin, mas vai aí uma pequena palhinha do livro:

“Nesse pequeno trabalho não pretendemos renegar o herói Bento Gonçalves, simplesmente, a partir de critérios morais, embora estes sejam relevantes e tenham motivado, de início, essa exposição. Ao contrário, consideramos fundamental, não desprezando os dados por esse ângulo, situá-lo na sua classe, entre os seus iguais, latifundiários que por seus interesses e atitudes eram absolutamente diferentes aos da massa popular, e cujas riquezas eram constituídas não apenas pelo processo ímpar da conquista do território, da escravidão humana, da exploração do trabalho alheio, mas paralelamente do contrabando, do saque indiscriminado e do roubo.

Essas reflexões poucos alvissareiras, é verdade, trazem um golpe forte no purificado mito gonçalveano. Entretanto, sua força manifesta-se através da natureza dos documentos, que até hoje sempre existiram em local de relativo e fácil acesso para os historiadores*. Não foram inventados e, igualmente, essa publicação também não é o resultado de um mirabolante e criativo plano para agredir gratuitamente o mais importante herói rio-grandense. Particularmente, gostaríamos que houvessem frutificado em nossa terra muitos heróis, cujo patamar de luta pudesse ser identificado pelo seu conteúdo popular. Todavia, os históricos ventos do Rio Grande ainda não puderam correr pelos campos e cidades com tal notícia...

Objetivamente, precisamos afrontar a necessidade que todo trabalho situe-se no senso comum, melhor maneira de alterar a visão dominante da elite sobre a história do Rio Grande do Sul. A supremacia da visão dominante e positiva sobre o processo social rio-grandense impera absoluta, articulando-se na massa popular como se fosse a sua verdadeira história. Existe uma tarefa urgente: a de reconstituir a história, para que o povo possa enxergar-se corretamente na sua trajetóra social, desde o passado, e encaminhe as transformações futuras. Assim, os pesquisadores não encontrarão mais tão facilmente (ou atribuirão com tanta liberdade ao povo) versos do cancioneiro popular, como esse:
“Bento Gonçalves da Silva
Da liberdade é o guia.
E herói. porque detesta
A infame tirania’’.

(in “ARREMATE DESSA HISTÓRIA POUCO ALVISSAREIRA”, p. 47/48)

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