Na vida, escolhemos caminhos
que nos surgem pela frente e costumamos seguir adiante, quase que
instintivamente, sem muita reflexão, pois, como dizem, o tempo está sempre nos
comendo pela perna. Encontramos muita gente nos anos de trajetória. E, em meus
50 anos, recém completados, então, um montão de gente. Cada qual com seu grau
de importância. E é claro que algumas pessoas se sobressaem das demais e
entram, quase todas sem querer, para um rol de destaque na nossa humilde
história. Priscila é uma delas.
Há alguns anos, encontrei
Priscila Lopes por acaso, num site de novos escritores. Foram caminhos que se
cruzaram, eram pretensões similares, mas comportamentos distintos.
Imprescindível detalhe. Eu desisti de escrever, pois minha avassaladora autocrítica
sagrou-se vencedora. Não lamentem. E ainda não sei se para o bem (dos leitores)
ou para o mal (meu, particular). Priscila, ao contrário, perseverante por
natureza (acredito, pois deu provas disso), seguiu em frente, cabeça erguida,
decidida. O resultado está diante de meus olhos. Um livro surpreendente. E já é
o seu segundo livro.
Costumo lembrar de uma frase que
vi num diálogo de um filme, visto há vários anos, cujo nome não me vem: “somos sempre maiores do que pensamos ser e
nossas ações geram mais consequências do que imaginamos.” É isso. Perfeito.
Priscila se enquadra perfeitamente na máxima. Li seu livro com deleite e com
certo orgulho de ter acompanhado sua trajetória, de longe, mas sempre com
interesse no seu sucesso. Reconheci seu talento. Há alguns anos, chegamos a
trocar emails, cujo teor não podia ser outra coisa: livros e literatura. Tive,
em determinado momento, o prazer de receber uma confissão de Priscila, que
talvez ela nem mais se lembre, entretanto vale recordar. Confidenciou-me à
época: “Vou te contar um segredinho”, disse, segura em compartilhar: “Eu a-do-ro
escritores gaúchos!” Aquilo soou como música aos meus ouvidos, ainda mais vindo
de uma catarinense. Primeiro, porque eu também adoro ler escritores gaúchos; e,
segundo, porque eles são meus conterrâneos. Anos depois, soube que um de seus
contos fora publicado na Revista Cult
e também fiquei muito feliz por mais um sucesso.
Em “O livro espantado” (122
páginas, editora Patuá, 2014), Priscila presenteia o leitor com 24 contos
curtos, em narrativas curiosas, fluidas e digestivas, cujos temas vagueiam
entre a infância e a pré-adolescência. Narrados, predominantemente, em primeira pessoa, a atmosfera
dos contos nos passa a impressão de um livro de memórias, com o tradicional clima
intimista e confessional. Embora já tenha lido que as narrativas em primeira
pessoa sejam pouco confiáveis, e que deixam o leitor inseguro, posto que a
história nos é transmitida sob o ponto de vista de apenas um dos personagens,
ao mesmo tempo nos passam a ideia de veracidade, como se tudo, realmente, tenha
acontecido. E Priscila conseguiu, pois, na maioria das narrativas de
personagens femininos, tem-se a impressão de que a história se passou com a
própria autora.
Embora na contracapa se
mencione um “mergulho no universo da infância”, percebi, na quase totalidade
dos contos, uma predominante maturidade na visão infantil das coisas pelos protagonistas,
como memória revivida. Assim como assisti a uma entrevista de um garoto de 11
anos, capaz de uma aula de maturidade, muito provavelmente por ser uma criança
que lê; acredito que revermos nossa infância em memórias longínquas depois de
adulto, não só nos enriquece, como nos deixa mais conscientes do contínuo e
necessário processo de autoconhecimento. Além disso, a narrativa de personagem
feminino também nos possibilita, como leitores masculinos, a inusitada e
interessante experiência extracorpórea.
Alguns contos se sobressaíram,
no meu gosto pessoal, e os destaco. Em “Nunca amar” (p.7), o conto que abre o
livro, a personagem com seus planos para o primeiro amor. “... à noite ficava até tarde na internet escolhendo as músicas;
músicas para tocar quando se conhecerem, músicas para quando já tiverem dito ‘te
amo’, músicas para o casamento... casamento!”, e foi impossível não fazer
minha associação a uma canção popular dos anos 70, cujos versos pedem que o
amor não chegue na hora marcada, e, ao final, imperativamente, “quando te encontrar, me reconheça”.
Me encantou a passagem, em “A maçã do amor” (p.31): “... Calou-se. Para sempre. E eu também emudeci pálido como açúcar;
apavorado como um pintinho que, na verdade, nem sabe do que tem medo, apenas
vive de se apavorar, até virar galinha e perceber que não havia mistério então;
era só botar ovos.”.
No conto “O livro espantado”
(p.43), conto que dá título ao livro, uma relação muito pessoal com o livro e a
paixão pela leitura: “... Foi em pé,
abraçada ao pacote, deslizando os dedos sobre ele, sentindo seu peso; não podia
ser o mesmo livro. Talvez fosse semelhante, com os vinte contos mais populares
do século, ou de poesias, ou de micronarrativas. Ou quem sabe fosse um livro
que o destino encomendara para ela...” E foi como mágica ler o conto e
rever a minha própria relação com os livros. Adquiri, na infância ainda, uma relação
quase esquizofrênica com o livro. O livro físico, seu cheiro, sua textura, a
magia das imagens das capas, orelhas de degustação, e aquelas quase infinitas
letrinhas enfileiradas a me hipnotizarem, sempre numa relação tempestuosa com a
minha impossibilidade financeira de adquiri-los. Em décadas de psicoterapia,
acho que eu só piorei. Embora eu, ultimamente, os tenha evitado, volta e meia
tenho recaídas e, confesso, leio, leio muito. Houve um tempo em que gostaria de
ter o poder especial de absorver o conteúdo de um livro com um simples toque de
dedo, como alguns personagens de filmes de ficção científica; ou, melhor, poder
esticar o tempo e ficar, dias e dias, lendo sem parar.
Em “Antes de mim” (p.97),
reflexões como verdadeira poesia em prosa: “...
ela às vezes falta em dias de chuva. Sua palidez pertence às quintas de chuva;
de certo fica em casa cultuando-a, de certo sua mãe ou seu pai entendam que
chover é suficiente. Pra que mais, me pergunto enquanto cruzo caras e bocas
sorridentes, pra que mais?”. E, ainda no mesmo conto, algo fantástico e
quase inimaginável: “... ela me ensinou
Mario Quintana. Eu gostava de falar da coisa sem dizer o nome da coisa, só
assim, coisa. E depois do Quintana eu me senti menos singular. Pelo menos até
saber que ele havia morrido. Depois pensei que talvez eu fosse sua
reencarnação, porque eu também escrevia ideias. E coisas.” (p.99).
E, não fossem todas as
demais passagens, só esta última já justificaria a leitura do livro, em “A menina roubada”
(p.121): “Então eu era um grito. Uma
imaginação. Compraram-me como um intangível. Eu estava no aplauso, estalando.
Eu estava no silêncio de taças inquebráveis. Como um porcelanato eu me atirei
contra meus princípios – num precipício estou caindo há vinte anos.” Uma
prova do talento e da escrita incomum de Priscila Lopes.
Outro dia li, numa das
suas postagens, em sua página do Facebook, na qual Priscila contestava uma
declaração equivocada de um leitor que dizia não haver escritores de talento na
Literatura Brasileira contemporânea após Guimarães Rosa. Bons escritores
existem e publicam. Falta, talvez, mais divulgação de seus trabalhos e, claro,
interesse dos leitores em procurar algo novo e de qualidade. Best Sellers nunca foram garantia de qualidade. Mas me sinto na liberdade de dizer que Priscila Lopes está
ao lado de muitos outros novos talentos da literatura brasileira contemporânea.
Entre os quais, gosto de lembrar dos que já li: Paulo Scott, Luisa Geisler,
Marcelino Freire, Ronaldo Bressane, Daniel Pelizzari, Clarissa Corrêa, e outros,
muitos outros.
Priscila Lopes |
Para saber mais sobre
Priscila, acesse:
Nenhum comentário:
Postar um comentário