sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Amar se aprende amando. Carlos Drummond de Andrade


"Falar da poesia de Carlos Drummond de Andrade é como discorrer sobre o inefável enigma da invenção. Não apenas da invenção formal ou vocabular, mas também — e sobretudo — de um processo subterrâneo e misterioso que o leva à perpétua recriação da própria vida dentro dos limites intangíveis de um tempo que “passa? Não passa / no abismo do coração” e das exigências de um amor que “não tem idade, / pois só quem ama escutou / o apelo da eternidade”. Fiel às suas mineiríssimas matrizes de humour e coloquialismo, à sua cristalina e inconfundível dicção, às antenações de seu complexo e cambiante psiquismo, à sua técnica insólita e exemplar de enumeração caótica dos elementos, à entranhada e intransigente paixão pela língua que lhe instrumenta toda a linguagem — fiel, enfim, a si mesmo, como aquele velho carvalho de que nos fala Heidegger —, Drummond se debruça aqui sobre as coisas miúdas, humílimas até e quase anônimas da multiforme floração cotidiana, encordoando outra vez uma viola que há muito silenciara. Versos de circunstância, dirão alguns. Quanto a mim, digo apenas que são versos e a consumada arte de fazêlos, O que mais exigir de um poeta?

Ao leitor advirto que há de tudo neste desconcertante e calidoscópico mafuá que agora se lê sob o título de Amar se Aprende Amando, no qual se colhem de imediato duas raras lições: uma primeira, de ousada simplicidade e que se dá logo à tona de seu enunciado, onde o autor se permite a audácia de reunir três verbos, cada um deles em voz distinta; e uma outra, mais funda e talvez difícil, que nos ensina essa prática (tão trivial não fosse hoje absurdamente anacrônica) cuja eficácia reside apenas na elementar e irretorquível verdade de que só se aprende mesmo fazendo. E foi exatamente isto o que fez o homo faber Carlos Drummond de Andrade ao longo de sua fecunda e já longa existência. E esta, sem dúvida, á sua grande definitiva lição: a de um fazer poético que se cumpre alheio a programas ou ideários prévios de qualquer índole, pois o poeta que mais uma vez nos visita — e qe uma vez mais deleitosamente freqüentamos — jamais submeteu sua obra, como agudamente observa Antônio Houaiss, às exigências de um projeto que o levasse a adotar “esta ou aquela técnica que estivesse ou esteja na ordem do dia do poetizar dos manifestos poéticos apriori”. Drummond não é poeta “porque o queira”, alerta-nos ainda este outro mestre, mas “porque toda alternativa o perderia de si para si”. E não há tema ou situação que o intimidem ou que lhe pareçam mais ou menos poéticos, de modo que tudo aqui surge banhado numa luz cujo precípuo e generoso desiderato é o de redimir e celebrar a criação através da criação. 

Não é a primeira vez que Drummond deita os olhos às coisas pequeninas da vida — ele, tão grande, mas que é, como qualquer um de nós, “esse bicho da terra tão pequeno” —, e ao leitor desavisado haverá de ocorrer decerto a idéia de que o poeta incorreu na prática de uma arte menor. Mas o que é maior ou menor quando transfigurado pela alquimia do verbo? Leiam-se, por exemplo, os tercetos brancos decassilábicos desse estupendo poema que leva o título de “A Excitante Fila do Feijão”, ao fim do qual se diz de si para si (e para todos nós) um certo Carlos que foi ser gauche na vida: “Larga, poeta, o verso comedido, / a paz de teu jardim vocabular, / e vai sofrer na fila do feijão.” Larga também, leitor, essa tola pretensão de que somente as coisas grandes e ditas profundas é que merecem teu desvelo e tua estima. Larga, afinal, e vem para cá. Vem aprender que não apenas “o sol é grande”, mas também este nosso minúsculo e mísero planeta, que “é grande e cabe / nesta janela sobre o mar”, e que este “mar é grande e cabe / na cama e no colchão de amar”, e que, muito mais do que eles, o “amor é grande e cabe / no breve espaço de beijar”. "

Ivan Junqueira (transcrição das orelhas do livros)

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