Este livro inicia com uma carta aberta a outro escritor e termina com um monólogo inédito para teatro. Entre esses dois chamamentos, o autor reuniu quatro histórias de amor e um crime, publicados de maneira esparsa ao longo dos últimos anos. A reorganização desses textos no interior do volume, bem como a presença da carta e do monólogo, situados estrategicamente na abertura e fecho da obra, sinalizam que alguma coisa nova se insinua na prosa de Marcelo Mirisola.
Depois de publicar pelo menos quatro livros de peso em curtíssimo período de tempo — Fátima fez os pés para mostrar na choperia é de1998, seguido por O herói devolvido (2000), O azul do filho morto (2002) e Bangaló (2003) —, o autor parece buscar com este Notas da arrebentação pôr em relevo uma faceta inédita de sua produção: a facilidade com que transita por vários gêneros.
O leitor de Mirisola sabe bem que cada um de seus escritos retoma, por vias diversas, o mesmo temário de obsessões, o qual sofre, a cada vez, ligeiros deslocamentos, de modo que a leitura em seqüência de seus textos deixa entrever uma coerente desordem. A princípio, seria possível pensar na imagem e círculos concêntricos: cada pequenina unidade funcionando de maneira autônoma e, ao mesmo tempo, colaborando para a ordem do todo. Entretanto, a imagem não funciona justamente porque é impossível encontrar o centro de uma obra que, de modo incessante, faz questão de desistir de se completar.
Pois é precisamente essa desistência que Ricardo Lísias aponta, em ensaio escrito para este volume, como um aspecto constitutivo da prosa deste autor: ao contrário da figura transgressiva que pode parecer à primeira vista, o narrador aqui está sempre pronto a capitular e aceitar aquilo que, no momento anterior, ridicularizava e diminuía. Estranho pacto então, este que se estabelece com o leitor, feito de expectativa e frustração, de sexualidade e fracasso, de lirismo e fobia, para culminar no reconhecimento comum de um mundo baixo e mesquinho.
Se fosse apenas isso, entretanto, a obra do autor não teria a força que de fato tem. Ocorre que este “narrador que perdeu” este narrador que, ao invés de madeleine, tem mandiopã e Almoço com as estrelas, e foi obrigado a curtir “o desbunde dos 70’s trancado numa Escola Experimental para filhos de nazistas endinheirados” — tenta a todo momento, como observa Lísias, “descobrir o que aconteceu com os anos 70 e 80”. A angústia que o atravessa, que cava golfos e abismos, e só encontra equivalência num céu esburacado de Van Gogh, remete, em negativo, a uma situação brasileira bastante concreta: a perda progressiva de perspectiva histórica que se abateu sobre as últimas gerações. É este perfil — cada vez mais nítido e crítico que Notas da arrebentação ajuda a delinear na literatura altamente reveladora de Marcelo Mirisola.
“Aluguei um moquifão por três meses e adquiri um mau hálito de aviário pré bossa-nova já no quinto andar do terceiro dia pantográfico da minha estada no Rio de Janeiro. Do meu moquifo — sob o ponto de vista das cortinas negras (sempre) eu acompanhava canelas rodopiando no mezanino de um prédio redondo do outro lado da avenida; era uma escola de dança e eu também via um pouco dos joelhos das bailarinas quase na bifurcação das primeiras putas da noite e à direita de quem pensava em suicídio. E, logo atrás desse prédio redondo, umas duas quadras até chegar em cima do túnel da Barata Ribeiro, tinha um morro no meio do caminho, e, de lá do alto, fuzis e metralhadoras se alternavam aos vômitos como se arrebentassem as sobras do pôr-do-sol ou despachassem pro céu uma cidade inteira junto com as primeiras estrelas da noite crivada de balas.” (contra-capa)
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