Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann — que desde cedo trocou o terceiro nome pelo de Amadeus, em homenagem a Mozart —, dono de uma imaginação prodigiosa mas considerada excêntrica por seus contemporâneos, foi diretor de orquestra, compositor de óperas, diretor de teatro, catedrático respeitado e boêmio desaforado. Sua vida desregrada redundou em morte prematura, quando mal completara quarenta e seis anos. Talento multifacetado, Hoffmann oscilou entre a mágica consciência de um rebelde e o arguto senso crítico. Atingiu em sua obra um realismo fantástico que serviu como elo de ligação entre o romantismo de seu tempo e as gerações posteriores.
E na literatura que se revela todo o seu talento, um dos mais originais do Romantismo alemão. Hoffmann possuía um forte senso de humor e sua predileção pelos temas de horror o tornou uma espécie de precursor do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Conhecido como o primeiro mestre do fantástico e do horror, compôs uma incrível galeria de personagens grotescas, fantoches ridículos, mandrágoras, vampiros, salamandras e demônios. Comparado a outros cultores contemporâneos do gênero, como os ingleses Radcliffe, Lewis e Maturin, mostrou-se muito superior a eles, não só por escrever com arte e imaginação mas por utilizar um material bem mais variado. Em seu universo literário o aparecimento de fantasmas em noites tempestuosas ou castelos abandonados apresenta-se como manifestação do imprevisível, muitas vezes ligada a fenômenos físicos e psicológicos que somente anos mais tarde a ciência estudaria.
Embora deva a maior parte de sua fama à interpretação epidérmica dos elementos fantasmagóricos, apresentados em suas histórias, tudo leva a crer que, longe de encará-los como uma dimensão do real, Hoffmann os explorou de modo consciente como expressão dos próprios conflitos interiores, muitas vezes tomando a realidade humana corno ponto de partida dos desdobramentos da sua imaginação. Uma de suas principais novelas, “Der Magnetiseur” (“O magnetizador”), publicada em 1814, confere ao desenvolvimento do fantástico uma familiaridade de efeito ironicamente crítico e cruel, ao mesmo tempo. Em outra, “Der Goldoni Topf’ (“O pote de ouro”), escrita no mesmo ano, o ficcionista alemão constrói uma história que Baudelaire considera o “mais completo tratado de estética”, e projeta todo o conceito de idealização artística numa suprema harmonia entre o real e o imaginário. Entre seus numerosos trabalhos, os principais são o romance fantástico “O elixir do diabo” (1815), as óperas “Aurore” e “Undine” e grande número de contos, a maioria deles reunidos em quatro volumes pelos irmãos Serapiões (nome assumido por um grupo de amigos do escritor) e “Idéias do gatão Murr sobre a vida e folhetos de uma biografia do maestro Kreisler” (1820-1822), estranho livro em que às confissões de um bichano se mescla a história de um músico.
Hoffmann foi um dos mais brilhantes críticos musicais de seu tempo, o primeiro a reconhecer a grandeza de Beethoven. Ele próprio foi compositor de música sacra de câmara, assim como de algumas óperas. No entanto foi a produção literária que lhe proporcionou fama e reconhecimento, influindo de modo decisivo nas futuras gerações de escritores. Influenciou entre outros Musset e Baudelaire, na França; Walter Scott, na Inglaterra; Gógol, na Rússia; e Poe, acima de todos, nos Estados Unidos. Foi também personagem de uma ópera de Offenbach, além de inspirar o libreto da “Tannhauser”, de Wagner, e o bailado “Copélia”, de Delibes, e influenciar muitos outros músicos, como Schumann e Berlioz.
Nascido a 24 de janeiro de 1776 em Königsberg, Alemanha, Hoffmann iniciou o curso de Direito em sua cidade natal mas somente veio a completar os estudos em Berlim. Embora precocemente atraído pela pintura, literatura e música, iniciou-se profissionalmente como funcionário público na cidade polonesa de Poznan.
Logo depois foi transferido para a pequena localidade de Plock, como punição por rabiscar caricaturas pouco respeitosas de seus chefes. Depois de algum tempo no ostracismo conseguiu a muito custo uma transferência para Varsóvia. Quando pensava estar com a vida arrumada, as tropas de Napoleão Bonaparte ocuparam a cidade, e em 1806 o escritor teve de retornar à Alemanha, onde viveu anos em apuros, experimentando uma dúzia de profissões.
Em fins de 1809, ele partiu para Bamberg como arranjador e regente de orquestra, mas as dificuldades enfrentadas, sobretudo de ordem financeira, levaram-no a retomar os cargos públicos. Em 1814 foi para Berlim, nomeado juiz de uma comarca, e iniciou um período de grande criatividade, quando produziu a maioria de seus trabalhos literários. A essa altura já granjeara algum nome com suas composições musicais, a que, juntamente com a literatura, continuava a dedicar-se nos momentos de lazer. Mas as alegres farras noturnas com os amigos em pouco tempo minaram-lhe a saúde. Hoffmann morreu precocemente, a 25 de junho de 1822, de uma paralisia progressiva. A novela erótica Irmã Monika (“Schwester Monika – Erzählt und Erfährt”) foi publicada pela primeira vez em 1815.
“— É precisamente sobre esse ponto — continuou meu pai — que a Igreja e o Estado se afastaram um do outro; este castiga os crimes que lesam a natureza ou a moral burguesa, enquanto aquela ataca os pecados cometidos contra a ordem moral ou divina. Ora, nós ignoraríamos tudo acerca do pecado se a lei não nos tivesse ensinado que não se deve sucumbir à tentação e se a consciência de nossos desvios não nos tivessem convencido sobre a força dessas leis! Os delitos chocam-se contra um obstáculo maior ainda, na medida em que os culpados não os podem suportar: Caim, já, teve de fugir diante do mandado de prisão da consciência. Mas supondo-se, em compensação, que numa nação, num povo, se reconheça, em virtude de uma espécie de convenção mútua, o direito de se assassinar, mutilar, roubar, caluniar, odiar ou invejar mutuamente, a lei, então, não teria mais ascendência; apenas a força contaria. A história nos oferece muitos exemplos disso. De gustibus non est disputandum! (“Gosto não se discute! “) Mas tudo o que não possui em si força de lei, o leão, por exemplo, ou o tigre, a rosa e o sabugueiro, a pedra e a água, deve ser submetido a leis exteriores. E contudo, no fundo, poder-se-ia do mesmo modo admitir que nada, na natureza das coisas, poderia ser submetido ao que quer que seja cuja essência fosse eterna. A água, por exemplo, que entre nós não se congela senão em certas épocas, poderia, em Saturno, transformar-se em pedra e, certamente, permanecer pedra enquanto as características físicas daquele planeta não tivessem sofrido qualquer transformação. Mas irias por isso imaginar que essa transformação fosse impossível?” (p.31)
“Irmã Monika estava nesse ponto do relato que fazia de sua história e da de seus amigos às freiras reunidas a sua volta, quando a porta do parlatório se abriu repentinamente: a irmã rodeira com seu passo sempre lepido, entregou a Monika uma carta volumosa, esclarecendo que havia sido trazida por um enviado especial.
Como era meio-dia, as freiras dirigiram-se para o refeitório, e Monika disse que faria a leitura, à sobremesa, do que lhe escrevia sua amiga Linchen, an- tiga camareira de sua mãe.
Durante o benedícite, recitado em latim, primeiro apenas pela madre abadessa, depois por todas as freiras, a abadessa observou que certas irmãs ainda não haviam adquirido habilidade suficiente para se exprimir com segurança e dignidade em latim, essa língua da Igreja que é também a mais pura das lín- guas, aquela que jamais é chiante ou nasal.
— O alemão é chiante, o francês, nasal — prosseguiu; — o francês não é capaz sequer de dizer “não” se tapar o nariz.
— Reverendíssima madre — interrompeu Monika —, permiti-me fazer uma pergunta: qual será a origem da palavra “nonne” (freira)?” (p.122)
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