Por Rafael Menezes do Blog Espanadores.
(…) Também a porta da casa estava meio aberta. Uma rajada de chuva açoitou meu rosto e entrei.
Dentro haviam tirado as lajotas e pisei num capim desgrenhado.
Um cheiro doce e nauseabundo penetrava na casa. À esquerda ou à direita,
não sei muito bem, tropecei numa rampa de pedra. Subi apressadamente.
Quase sem refletir, fiz girar a chave da luz.
A sala de jantar e a biblioteca de minhas lembranças eram agora,
derrubada a parede divisória, num único grande cômodo desguarnecido,
com um ou outro móvel. Não tentarei descrevê-las, porque não estou
seguro de tê-las visto, apesar de impiedosa luz branca. Vou me explicar.
Para ver uma coisa, é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõem o
corpo humano, suas articulações e partes; as tesouras, o ato de cortar.
Que dizer de uma lâmpada ou veículo? O selvagem não pode perceber Bíblia
do missionário; o passageiro não vê o mesmo cordame que os homens de
bordo. Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos.
Nenhuma das formas insensatas que aquela noite me deparou
correspondia à figura humana ou a algum uso concebível. Senti repulsa e
terror. Num dos cantos descobri uma escada vertical, que dava para outro
andar. Entre os largos lanços de ferro, que não passariam de dez, havia
vãos irregulares. Aquelas escada, que postulava mãos e pés, era
compreensível e de algum modo de aliviou. Apaguei a luz e aguardei algum
tempo no escuro. Não ouvi o menor som, mas a presença das coisas
incompreensíveis perturbava-me. Afinal me decidi.
Trecho de There are more things
Ao ver o doodle do Google comemorando o 112º aniversário do escritor
argentino, talvez o maior de todos, me ocorreram duas coisas (ou talvez
três): que o 112 não é exatamente algo a se comemorar, apesar que arte é
realmente bonita apesar que nunca imaginei o mundo de Borges como algo
colorido à la Asterios Polyp; que também há algum tempo ignoro Borges,
não no sentido de que nunca o li, mas no sentido que conforme ele mesmo
escreve “aprender é recordar, ignorar é de fato ter esquecido”. (Noite dos dons, Livro de Areia),
que segundo ele é uma citação de Bacon, mas como nunca li Bacon para
mim é um citação de Borges, citando Bacon e nós acreditamos em Borges
(que perigo!). Enfim, o fato é que o escritor argentino é um dos
escritores do meu coração, e o fato de tê-lo esquecido nesse meio tempo é
motivada por razões irônicas, pois ele só escreveu ficção por meio de
contos e eu esqueço muito rapidamente de contos. Mas nessas situações,
você vê uma dupla ironia, pois o fato de esquecer sempre me faz voltar
aos meus livros de contos preferidos e relê-los como quem degusta um
novo sabor. Então voltar a Histórias Extraordinárias, Boca do Inferno, Contos de Aprendiz, Histórias Abensonhadas e meu querido Aleph são tarefas recorrentes.
Sendo assim esse 24 de Agosto me dá o prazer de degustar e recordar/aprender Jorge Luís Borges novamente …
E esse sou eu sentado na mesma cama que agora estou parando de escrever
sobre Borges e abortando a ideia, ao perceber não só como é difícil a
tarefa, como também Jorge Luís Borges me assusta muito para escrever
qualquer coisa sobre. Logicamente há contos que são resumidos como a Noite dos dons,
em que o narrador vai experimentar tanto à beleza do amor como o medo
da morte, mas em sua grande maioria os contos de Borges são labirintos
em que não dá para resumir, muito menos para se achar o começo e o fim
em algumas de suas alegorias. Borges é uma leitura que mais que tudo,
deve ser sentida e se há uma resumo de algo, é sensação de estranhamento
que o texto deixa para trás e para frente, assim como o personagem se
sente impossível de descrever o que vê no excerto. Esse é Jorge Luís
Borges.
Minha tarefa abortada já era a segunda tentativa (isso é… que eu me lembro), pois tinha pensado em fazer uma resenha do Aleph muito
tempo antes e esse sim , um tempo que já está esquecido nos confins da
memória ao contrário deste 24 de agosto bem datado, mas igualmente
perdido no tempo. Essa é terceira vez e o abismo parece tão grande
quanto a primeira. Agora imagino que se o escritor estivesse comigo
aqui, ele questionaria a veracidade destes tempos por mim citados: Esse
distante, este 24 de agosto, e este 24 de Abril (uma coincidência?)
existiria de fato, sendo que é o mesmo lugar, a mesma pessoa, o mesmo
intuito, o mesmo medo tudo isso no mesmo espaço, e o tempo, o gêmeo
maldito, é algo tão futuro ao leitor-por-vir. Esse é pensamento
labiríntico de Jorge Luís Borges, que ainda iria mias longe ao pressupor
que todas as terças essa mesma repetição de ações, não levaria este
momento ao infinito sem começo ou fim. E esse seria o Borges Master.
Alias encontrar o Borges não seria uma loucura, ele mesmo faz isso no começo deste livro em análise, em O Outro
Borges-jovem encontra o Borges-velho num canto da cidade e eles travam
um belo diálogo sobre a que está por vir, e o que o outro espera. E
como isso acontece? Não é necessário saber, não existe explicação,
somente a ciência de que o tempo e o espaço são completamente ignorados
nos contos, assim como essa resenha só começa a falar do livro em sua
metade e nem sabe se termina falando do mesmo.
Livro de Areia, é o último livro de contos de Jorge
Luís Borges publicado pela primeira vez em 1975. Famoso pelos contos
fantásticos, Borges no entanto publicou mais poesia e ensaios do que
coletâneas de Contos, além de diversas parcerias com Adolfo Bioy Casares
e de ter, segundo seus estudiosos, três livros de difícil
classificação: História Universal da Infâmia (reescrituras de textos de outros autores) , Livro dos seres imaginários (Um enciclopédia de seres que não existem) e Atlas (Um diário de viagem à la Borges). Dos contos mesmo são seis reuniões e O Livro de Areia
é o último, sendo que ele já estava praticamente cego ao terminar este.
A narrativa fantástica de Borges no entanto é diferente de qualquer uma
que você tenha visto, pois o fantástico de Borges é quase sempre algo
inexplicável, inenarrável, que pressupõem o infinito e o impossível.
No Livro de areia temos História alegórica sobre a destruição do Conhecimento (O congresso, aliás sua obra de ficção mais longa: 14 páginas!), parte da História escondida do mundo (a seita dos trinta), a descoberta do amor com um ser fantástico (Ulrica) e até destoando um pouco, A noite dos dons,
que tem uma história-dentro-da-história-dentro-da-história mas ainda
assim é algo mais dentro dos padrões narrativos normais. Essas são
algumas das histórias mais simples da coletânea e é engraçado observar a
habilidade em se criar o estranhamento até num trecho simples, como o
narrador seguindo Ulrica para o hotel onde consumariam seu amor:
Estávamos de repente diante da pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
Do alto da escadaria Ulrica gritou para mim:
- Ouviu o lobo? Já não existem lobos na Inglaterra. Ande logo.
- Ouviu o lobo? Já não existem lobos na Inglaterra. Ande logo.
Ao subir ao andar de cima, notei que as paredes estavam
empapeladas à maneira de William Morris, num vermelho muito profundo com
frutos e pássaros entrelaçados. Ulrica entrou primeiro. O aposento
escuro era baixo, com um teto de duas águas. A espada cama duplicava
vagamente num cristal, e o mogno polido me lembrou o espelho da
Escritura.
Essa história vai aos poucos colocando o mito de Beowoulf entre as
personagens, e, mais que isso, parece estar trazendo esta época antiga à
narrativa. Essas descrições, além de belas, acrescentam a tensão pelo
significado que te instiga a ler Borges, o que dizer então das radicais
como a o encontro consigo mesmo (O outro); ou o diálogo entre um rei e um poeta que encontram o verso máximo da Beleza e sofrem por isso (O espelho e a máscara), ou mesmo o ser que carrega uma pedra de Odin com um lado só (O disco).
Mas o conto definitivo para mim, aquele que melhor resume a obra do
escritor argentino é o último do livro, o último da obra e genial, assim
como o Division Bell do Pink Floyd ou o Farewell de
Drummond encera um obra perfeita com o que de melhor: "O livro de
areia", que dá titulo ao livro é um livro que, assim como o deserto, não
tem começo e não tem fim, é impossível chegar a primeira página e a
última (???????????????) Como isso é possível Rafael? Leia e você verá
como essa breve e intrigante história, fecha aquilo que Borges não teme,
nem duvida que exista: O infinito.
Para finalizar há mais uma característica que a literatura fantástica de
Borges tem e que muitos escritores latino americanos bebem ainda hoje: A
metalinguagem. Mais do que citações inteligentes como Vila Mattas &
Bolaño, a metalinguagem de Borges está no próprio texto, bem claro como
no Congresso ou o Livro de Areia, símbolos puros
dessa fixação com a linguagem. Ao ler o livro de cabo a rabo você
percebe como a obsessão por criar uma narrativa que se remeta a ela
própria é mais pura neste livro e aí você percebe isso em todos. E
fazendo uma digressão, uma das coisas que mais me assombraram em Borges é
o fato de ele ter ficado cego progressivamente durante a vida. Um
motivo de admiração que remete a antes de lê-lo, pois já conhecia sua
fama, mas também de espanto, pois eu conseguiria me imaginar tomando uma
Guinness com Joyce, ou discutindo com Saramago, mas nunca consegui
imaginar Borges, pois para mim ele é impossível num aspecto mais
alegórico e pessoal. Mas aí, as ironias veem e me mostraram algo
recentemente: o fato da cegueira progressiva de Borges talvez, segundo
seus maiores estudiosos, tenha sido a gênese de sua genialidade
simbólica com a palavra, em criar novas imagens somente com as palavras.
É um pensamento interessante pensar que um dos maiores escritores do
mundo, tenha se tornado ainda mais genial em função da cegueira… mas não
menos aterrorizante. Por isso e por mais um pouco, que não vai dar para
escrever Borges, neste post bem passional. É um dos grandes escritores
de todo o sempre.
A obra está sendo reeditada pela Companhia das Letras e este exemplar
específico está sendo o carro chefe da coleção ibero-americana da Folha
de S.Paulo, que independendo de seu ponto de vista sócio-político sobre o
o jornal que organiza essa coleção, é uma ótima oportunidade de se
conhecer os nossos irmãos de língua e algum dos mais novos escritores
brasileiros. Mas também Borges pode ser uma faca de dois gumes, então se
você está estranhando o mundo borgiano, dê uma lida no post.
- Mas eu já ceguei até aqui?
Eu sei, mas a internet talvez seja o que em 1975 o leitor achou que
seria impossível. Algo sem começo, sem fim no espaço e no tempo (quando
eu escrevi? em 24 agosto. 24 de abril. quando você terminou de ler), com
páginas sem numeração e mutável, que nunca estão no mesmo lugar. A
internet é, no fim, o verdadeiro Livro de Areia. E em algum lugar deste tempo Borges sorri.
O Livro de Areia
Autor: Jorge Luis Borges
Tradutor: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Cia. das Letras, 104 páginas
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