quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Os 120 dias de Sodoma. Marquês de Sade

"Bom, agora que vocês já foram devidamente introduzidos (!) ao pensamentos sadista, podemos discutir aquela que é considerada sua obra máxima… o incompleto, e, por muito tempo dado como perdido, “120 Dias de Sodoma”.

“120 Dias de Sodoma” usa o mesmo recurso de história-dentro-da-história de livros clássicos, como “Mil e Uma Noites” e o “Decamerão”. Não é tanto uma paródia quanto um estilo comum à época. No castelo de Silling, um juiz, um nobre, um político e um padre se reúnem, trancados por 120 dias com um grupo de prostitutas vis e envelhecidas, e jovens virgens e belos, de ambos os sexos, que, durante o decorrer da narrativa serão submetidos aos mais diversos abusos. Em cada dia uma prostituta narra uma história diferente, sendo que os epísódios são cuidadosamente escalonados em um crescendo de perversão, maldade, violência e terror. As primeiras histórias, as paixões simples, nem sequer envolvem penetração. Já as últimas, as paixões assassinas, invariavelmente envolvem a tortura, mutilação e morte como o elemento erótico do texto.

Nada disso é gratuito. Sem dúvida Sade tinha lá a intenção de chocar… mas o sadismo é muito mais que um fetiche para a classe média aborrecida, incapaz de perceber que o problema não é tanto repetição incessante da posição papai e mamãe e mais o fato de que papai e mamãe gostariam mesmo é de estar trepando com titio e titia. Talvez ao mesmo tempo… but I digress. Sadismo é uma visão de mundo complexa que envolve uma dura crítica às autoridades estabelecidas, retratadas como criminosos mendazes e cruéis, pouco interessados em mais do que oprimir as classes baixas, dispondo deles conforme suas vontades mais odiosas e rompendo em privado com os ideais de justiça, fraternidade e igualdade que pregam em público. Mas é aí que está a ambiguidade do pensamento de Sade, a contradição interna que contribui grandemente para a não-compreensão da obra do autor: ao mesmo tempo em que Sade denuncia a hipocrisia da autoridade e dos valores morais, que em sua visão são apenas formas de controle impostas sobre o povo e que não representam nenhuma realidade empírica ou objetiva, Sade dá a entender que a libertinagem, em última instância, leva à destruição. Assim como em “Filosofia na Alcova”, em que a libertação da casta Eugénie do mundo dos valores burgueses a transforma em um monstro, também em “120 Dias de Sodoma” a única personagem capaz de superar o ciclo de abuso e submissão imposto pelos protagonistas é aquela que se torna ela também um algoz, e assassina.

A visão normalmente propagada do sadismo enquanto ato erótico é, afinal de contas, extremamente sanitizado e anódino. A disposição emocional de Sade provavelmente variaria entre diversos tons de descrença e fúria, ao ver que, em nosso século, seu nome é associado à fantasias de couro e chicotinhos de brinquedo vendidos no sex shop da esquina para donas de casa aborrecidas (ver falta de titio e titia, acima). O sadismo sexual, na obra do bom Marquês, era um ato que deveria, invariavelmente, culminar com a morte da parte submissa, de preferência após tortura indizível e insuportável. A idéia de sadismo consensual seria, em si, absurda e desagradável. O prazer residiria justamente na violação, no profundo abuso da integridade física, moral e emocional de uma das partes, que seria muito mais vítima do que parceiro sexual. Não que Sade fosse um mórbido. Na verdade, o homem foi preso por Robespierre justamente por se opôr firmemente à pena de morte. Mas, na visão de sexualidade de Sade, o prazer e a morte, o êxtase e a agonia, não eram forças opostas, mas sim elementos extremamente interligados e interdependentes. Note que a última história de “120 Dias de Sodoma”, por definição o ato sexual supremo na visão de Sade, não envolve nenhuma forma de intercurso como nós conhecemos. É sim a história de um homem que mutila e assassina 15 jovens das mais diferentes maneiras, tirando seu prazer de vê-las morrer. Para Sade, em última instância, o gozo era causar a destruição.

Daí a ambiguidade, já mencionada. Sade defendia um mundo onde, ao invés de se manterem submetidos a forças totalitárias e mentirosas, as pessoas seguissem seus próprios valores subjetivos, buscando a obtenção do prazer individual. Mas, ao mesmo tempo, Sade demonstrava que, a busca incessante pelo prazer individual só poderia levar a um estado generalizado de violência, conforme a dissolução total dos valores morais levasse os homens à busca ao êxtase máximo: a obliteração sem culpa do outro. Talvez Sade acreditasse na existência de um meio-termo entre um ponto e outro. Talvez não, e nem sequer se importasse.

Mas depois de toda essa exegese do pensamento sadiano, resta ainda a pergunta crucial: O livro é bom? Não. Não é não. Para um livro cujos temas principais são sexo e morte (aliás, que livro não é sobre isso?), “120 Dias de Sodoma” é surpreendentemente chato. Sade podia ser um crítico ferrenho da mentalidade Iluminista, mas também não deixava de ser um homem de seu tempo. Como uma espécie de Diderot do mal, Sade pretendia fazer uma compilação exaustiva de cada tipo de ato sexual fora da norma, devidamente categorizado e registrando cada variante possível. O resultado é uma história sobre um cara que come cocô, outro que come cocô e vomita, daí uma história sobre um que gosta que comam cocô e vomite nele, e outro ainda que faz tudo isso e daí come o cocô vomitado depois… e o resultado é tão aborrecido quanto ler uma enciclopédia, que é o que “120 Dias…” se propunha ser. Para piorar, não estamos mais no século XVI. Hoje em dia filmes como O Albergue ou Jogos Mortais tornaram a tortura com requintes de crueldade não só um lugar-comum, mas praticamente um novo gênero de ficção. As atrocidades de “120 Dias de Sodoma” não deixam de ser perturbadoras, mas não são nada capaz de abalar muito profundamente as disposições cínicas de um habitante do século XXI. O diferencial de “120 Dias de Sodoma” é que, diferente dos filmes acima, o objetivo de Sade não era só entretenimento. Era abrir uma janela, uma passagem negra e reveladora para o outro lado, secreto, dos belos e brilhantes ideais do Iluminismo. Sade é bom para se pensar, como diz Lévi-Strauss. Mas para ler casualmente, isso é outra história.

(Mas pode gerar circunstâncias interessantes, como quando entrava na minha casa com o livro e meu pai, na varanda me perguntou: “Que livro grosso na sua mão, filho. É a Bíblia?”. “Não”, respondi, “são OS 120 DIAS DE SODOMA!”. Foi engraçado ver a cara de surpresa do velho, enquanto ele dizia “Caralho! Não podia estar mais errado!…”)"

Outra resenha: "Levante a mão quem já leu esse livro. Eu sou a única pessoa que eu conheço que, por enquanto, teve estômago para ler de cabo a rabo os 120 dias de Sodoma, de Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade. Escrito em 1785 em seu encarceramento na Bastilha (foi transferido pra lá depois que o Château de Vincennes foi fechado, em 1784). O Sade é um cara assim meio Edward Bunker, passou quase toda a vida preso, seja por perseguições políticas, seja pelas merdas que ele fez com suas prostitutas (reza uma lenda de que ele teria envenenado duas delas “sem querer” ao ter ministrado “pílulas para peidar”. Ele curtia umas coisas dessas).

Tenho uma “tioria” que atesta que quanto menor o tempo que o escritor leva para escrever sobre um assunto, mais presente o tal assunto está em sua vida. Pois bem: os 120 dias de Sodoma foram escritos em apenas trinta e sete dias. Bom, na verdade, a obra nunca chegou a ser completada, pois, dos cento e vinte dias do enredo, foram narrados apenas trinta. Para o resto ele fez apenas o roteiro e a descrição dos dias. Acontece que depois a Bastilha foi tomada, todo mundo picou a mula de lá e o manuscrito acabou sendo deixado para trás, apenas para ser recuperado anos depois. Foi então que essa hecatombe literária veio ao mundo.

Resumo da ópera: quatro ricaços muito pervertidos que comem as próprias filhas resolvem ir para um castelo na Suíça para passar quatro meses de pura sacanagem. Para isso contratam quatro putas velhas (chamadas “musas”) para narrar suas histórias e quatro amas. 

Seqüestram oito meninas e oito meninos virgens de idade entre 12 e 15 anos para serem arregaçados e ainda solicitam oito “fodedores”, sujeitos de pirocas enormes para enrabar os amigos (eles são chegados nisso também). A cada mês o nível de perversão aumenta. Começa leve: gente que come cocô, vômito, mija na cara, etc. No segundo mês, as “paixões duplas”: incestos mil e os water sports já mencionados. No terceiro, “paixões criminosas”: gente que sente tesão em furar um olho, arrancar um dente, cortar o dedo. Por último, “paixões assassinas”: galera que só se diverte se matar o parceiro sexual. Claro que quem sofre com isso são as criancinhas, que além de serem todas descabaçadas, ainda são lentamente mutiladas até a morte (vocês devem estar dizendo “Chega! Chega! Chega!”).


Há uma cena emblemática: Quando uma das musas narra um golden shower e os nobres mandam deitar uma das menininhas virgens na mesa para receber o mijo na cara, a menina diz algo como: “Pelo amor de Deus, senhor, não faça isso comigo senhor. Estou muito triste porque, na ocasião do meu sequestro, meus pais foram assassinados por seus capangas.” Aí um dos ricaços chega pra ela e fala: “Menina, não se atreva a falar de Deus aqui dentro. Se Deus existisse ele não deixaria a gente fazer isso com você.” Acho que essa cena resume o livro. É a crueldade desenfreada, a busca pelo prazer sem ética, tudo o que as pessoas fazem quando saem pro crime nas festinhas e não se preocupam com quem elas estão beijando, só que com uma lupa de aumento brutal que explicita o horror da coisa.

Ganhei esse livro de natal da querida tia Albinha (desconfio que se ela soubesse do que se trata esse livro, ela teria preferido me dar outra coisa) e o li enquanto pedalava bicicletas ergométricas numa masmorra chamada academia de ginástica. O livro é extremamente bem escrito, com uma prosa da era moderna fluída. Gostei mesmo da proposta do livro e recomendo para quem agüentar o rojão.

A edição da Iluminuras é linda pra caralho. Vem com um marcador personalizado preso à orelha (só destacar). Excelente diagramação e o melhor: um dos melhores desenhos de nada menos que Egon Schiele na capa. Acho que todo mundo que desenha curte, ou deveria curtir Schiele porque as poses que ele desenha não são para qualquer um. (falo mais dele se um dia for falar dos Cadernos de Dom Rigoberto). Papel pólen, pra agradar todo mundo e fonte Garamond, que eu acho meio apagada, mas estilosa demais." (Fonte: Livrada)

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