"Bom, agora que vocês já foram devidamente
introduzidos (!) ao pensamentos sadista, podemos discutir aquela que é
considerada sua obra máxima… o incompleto, e, por muito tempo dado como
perdido, “120 Dias de Sodoma”.
“120 Dias de Sodoma” usa o mesmo recurso de
história-dentro-da-história de livros clássicos, como “Mil e Uma Noites”
e o “Decamerão”. Não é tanto uma paródia quanto um estilo comum à
época. No castelo de Silling, um juiz, um nobre, um político e um padre
se reúnem, trancados por 120 dias com um grupo de prostitutas vis e
envelhecidas, e jovens virgens e belos, de ambos os sexos, que, durante o
decorrer da narrativa serão submetidos aos mais diversos abusos. Em
cada dia uma prostituta narra uma história diferente, sendo que os
epísódios são cuidadosamente escalonados em um crescendo de perversão,
maldade, violência e terror. As primeiras histórias, as paixões simples,
nem sequer envolvem penetração. Já as últimas, as paixões assassinas,
invariavelmente envolvem a tortura, mutilação e morte como o elemento
erótico do texto.
Nada disso é gratuito. Sem dúvida Sade tinha lá a
intenção de chocar… mas o sadismo é muito mais que um fetiche para a
classe média aborrecida, incapaz de perceber que o problema não é tanto
repetição incessante da posição papai e mamãe e mais o fato de que papai
e mamãe gostariam mesmo é de estar trepando com titio e titia. Talvez
ao mesmo tempo… but I digress. Sadismo é uma visão de mundo complexa que
envolve uma dura crítica às autoridades estabelecidas, retratadas como
criminosos mendazes e cruéis, pouco interessados em mais do que oprimir
as classes baixas, dispondo deles conforme suas vontades mais odiosas e
rompendo em privado com os ideais de justiça, fraternidade e igualdade
que pregam em público. Mas é aí que está a ambiguidade do pensamento de
Sade, a contradição interna que contribui grandemente para a
não-compreensão da obra do autor: ao mesmo tempo em que Sade denuncia a
hipocrisia da autoridade e dos valores morais, que em sua visão são
apenas formas de controle impostas sobre o povo e que não representam
nenhuma realidade empírica ou objetiva, Sade dá a entender que a
libertinagem, em última instância, leva à destruição. Assim como em
“Filosofia na Alcova”, em que a libertação da casta Eugénie do mundo dos
valores burgueses a transforma em um monstro, também em “120 Dias de
Sodoma” a única personagem capaz de superar o ciclo de abuso e submissão
imposto pelos protagonistas é aquela que se torna ela também um algoz, e
assassina.
A visão normalmente propagada do sadismo enquanto ato
erótico é, afinal de contas, extremamente sanitizado e anódino. A
disposição emocional de Sade provavelmente variaria entre diversos tons
de descrença e fúria, ao ver que, em nosso século, seu nome é associado à
fantasias de couro e chicotinhos de brinquedo vendidos no sex shop da
esquina para donas de casa aborrecidas (ver falta de titio e titia,
acima). O sadismo sexual, na obra do bom Marquês, era um ato que
deveria, invariavelmente, culminar com a morte da parte submissa, de
preferência após tortura indizível e insuportável. A idéia de sadismo
consensual seria, em si, absurda e desagradável. O prazer residiria
justamente na violação, no profundo abuso da integridade física, moral e
emocional de uma das partes, que seria muito mais vítima do que
parceiro sexual. Não que Sade fosse um mórbido. Na verdade, o homem foi
preso por Robespierre justamente por se opôr firmemente à pena de morte.
Mas, na visão de sexualidade de Sade, o prazer e a morte, o êxtase e a
agonia, não eram forças opostas, mas sim elementos extremamente
interligados e interdependentes. Note que a última história de “120 Dias
de Sodoma”, por definição o ato sexual supremo na visão de Sade, não
envolve nenhuma forma de intercurso como nós conhecemos. É sim a
história de um homem que mutila e assassina 15 jovens das mais
diferentes maneiras, tirando seu prazer de vê-las morrer. Para Sade, em
última instância, o gozo era causar a destruição.
Daí a ambiguidade, já mencionada. Sade defendia um
mundo onde, ao invés de se manterem submetidos a forças totalitárias e
mentirosas, as pessoas seguissem seus próprios valores subjetivos,
buscando a obtenção do prazer individual. Mas, ao mesmo tempo, Sade
demonstrava que, a busca incessante pelo prazer individual só poderia
levar a um estado generalizado de violência, conforme a dissolução total
dos valores morais levasse os homens à busca ao êxtase máximo: a
obliteração sem culpa do outro. Talvez Sade acreditasse na existência de
um meio-termo entre um ponto e outro. Talvez não, e nem sequer se
importasse.
Mas depois de toda essa exegese do pensamento
sadiano, resta ainda a pergunta crucial: O livro é bom? Não. Não é não.
Para um livro cujos temas principais são sexo e morte (aliás, que livro
não é sobre isso?), “120 Dias de Sodoma” é surpreendentemente chato.
Sade podia ser um crítico ferrenho da mentalidade Iluminista, mas também
não deixava de ser um homem de seu tempo. Como uma espécie de Diderot
do mal, Sade pretendia fazer uma compilação exaustiva de cada tipo de
ato sexual fora da norma, devidamente categorizado e registrando cada
variante possível. O resultado é uma história sobre um cara que come
cocô, outro que come cocô e vomita, daí uma história sobre um que gosta
que comam cocô e vomite nele, e outro ainda que faz tudo isso e daí come
o cocô vomitado depois… e o resultado é tão aborrecido quanto ler uma
enciclopédia, que é o que “120 Dias…” se propunha ser. Para piorar, não
estamos mais no século XVI. Hoje em dia filmes como O Albergue ou Jogos Mortais
tornaram a tortura com requintes de crueldade não só um lugar-comum,
mas praticamente um novo gênero de ficção. As atrocidades de “120 Dias
de Sodoma” não deixam de ser perturbadoras, mas não são nada capaz de
abalar muito profundamente as disposições cínicas de um habitante do
século XXI. O diferencial de “120 Dias de Sodoma” é que, diferente dos
filmes acima, o objetivo de Sade não era só entretenimento. Era abrir
uma janela, uma passagem negra e reveladora para o outro lado, secreto,
dos belos e brilhantes ideais do Iluminismo. Sade é bom para se pensar,
como diz Lévi-Strauss. Mas para ler casualmente, isso é outra história.
(Mas pode gerar circunstâncias interessantes, como
quando entrava na minha casa com o livro e meu pai, na varanda me
perguntou: “Que livro grosso na sua mão, filho. É a Bíblia?”. “Não”,
respondi, “são OS 120 DIAS DE SODOMA!”. Foi engraçado ver a cara de
surpresa do velho, enquanto ele dizia “Caralho! Não podia estar mais
errado!…”)"
Outra resenha: "Levante a mão quem já leu esse livro. Eu sou a única pessoa que eu
conheço que, por enquanto, teve estômago para ler de cabo a rabo os 120
dias de Sodoma, de Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de
Sade. Escrito em 1785 em seu encarceramento na Bastilha (foi transferido
pra lá depois que o Château de Vincennes foi fechado, em 1784). O Sade é
um cara assim meio Edward Bunker, passou quase toda a vida preso, seja
por perseguições políticas, seja pelas merdas que ele fez com suas
prostitutas (reza uma lenda de que ele teria envenenado duas delas “sem
querer” ao ter ministrado “pílulas para peidar”. Ele curtia umas coisas
dessas).
Tenho uma “tioria” que atesta que quanto menor o tempo que o escritor
leva para escrever sobre um assunto, mais presente o tal assunto está
em sua vida. Pois bem: os 120 dias de Sodoma foram escritos em apenas
trinta e sete dias. Bom, na verdade, a obra nunca chegou a ser
completada, pois, dos cento e vinte dias do enredo, foram narrados
apenas trinta. Para o resto ele fez apenas o roteiro e a descrição dos
dias. Acontece que depois a Bastilha foi tomada, todo mundo picou a mula
de lá e o manuscrito acabou sendo deixado para trás, apenas para ser
recuperado anos depois. Foi então que essa hecatombe literária veio ao
mundo.
Resumo da ópera: quatro ricaços muito pervertidos que comem as
próprias filhas resolvem ir para um castelo na Suíça para passar quatro
meses de pura sacanagem. Para isso contratam quatro putas velhas
(chamadas “musas”) para narrar suas histórias e quatro amas.
Seqüestram
oito meninas e oito meninos virgens de idade entre 12 e 15 anos para
serem arregaçados e ainda solicitam oito “fodedores”, sujeitos de
pirocas enormes para enrabar os amigos (eles são chegados nisso também).
A cada mês o nível de perversão aumenta. Começa leve: gente que come
cocô, vômito, mija na cara, etc. No segundo mês, as “paixões duplas”:
incestos mil e os water sports já mencionados. No terceiro, “paixões
criminosas”: gente que sente tesão em furar um olho, arrancar um dente,
cortar o dedo. Por último, “paixões assassinas”: galera que só se
diverte se matar o parceiro sexual. Claro que quem sofre com isso são as
criancinhas, que além de serem todas descabaçadas, ainda são lentamente
mutiladas até a morte (vocês devem estar dizendo “Chega! Chega!
Chega!”).
Há
uma cena emblemática: Quando uma das musas narra um golden shower e os
nobres mandam deitar uma das menininhas virgens na mesa para receber o
mijo na cara, a menina diz algo como: “Pelo amor de Deus, senhor, não
faça isso comigo senhor. Estou muito triste porque, na ocasião do meu
sequestro, meus pais foram assassinados por seus capangas.” Aí um dos
ricaços chega pra ela e fala: “Menina, não se atreva a falar de Deus
aqui dentro. Se Deus existisse ele não deixaria a gente fazer isso com
você.” Acho que essa cena resume o livro. É a crueldade desenfreada, a
busca pelo prazer sem ética, tudo o que as pessoas fazem quando saem pro
crime nas festinhas e não se preocupam com quem elas estão beijando, só
que com uma lupa de aumento brutal que explicita o horror da coisa.
Ganhei esse livro de natal da querida tia Albinha (desconfio que se
ela soubesse do que se trata esse livro, ela teria preferido me dar
outra coisa) e o li enquanto pedalava bicicletas ergométricas numa
masmorra chamada academia de ginástica. O livro é extremamente bem
escrito, com uma prosa da era moderna fluída. Gostei mesmo da proposta
do livro e recomendo para quem agüentar o rojão.
A edição da Iluminuras é linda pra caralho. Vem com um marcador
personalizado preso à orelha (só destacar). Excelente diagramação e o
melhor: um dos melhores desenhos de nada menos que Egon Schiele na capa.
Acho que todo mundo que desenha curte, ou deveria curtir Schiele porque
as poses que ele desenha não são para qualquer um. (falo mais dele se
um dia for falar dos Cadernos de Dom Rigoberto). Papel pólen, pra
agradar todo mundo e fonte Garamond, que eu acho meio apagada, mas
estilosa demais." (Fonte: Livrada)
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