quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Contos D’Escárnio / Textos Grotescos. Hilda Hilst


Divertimento garantido! Uma crítica mordaz, veemente, ao nosso “moralismo” sem sentido, sem qualquer pudor (falso) na linguagem. O leitor que se sentir incomodado, que faça uma auto-crítica ou feche o livro e vá ler livros evangélicos ou “minutos de sabedoria”. Trata-se de uma sátira muito divertida, com doses generosas de ironia, muito bem estruturada, típica de uma grande escritora. Em “Contos D’Escárnio”, Hilda Hilst deixou-se “incorporar” por um personagem masculino, um sessentão chamado Crasso. Coincidentemente a mesma idade da autora, em 1990, ano da publicação do livro. Em primeira pessoa, como todo livro de memórias, o narrador Crasso registra suas “safadezas da maneira mais chula possível”, deixando o leitor completamente pasmo, embasbacado, pois, independentemente do fato de sabermos distinguir autor e obra, inconscientemente acabamos por vincular uma coisa e outra. É natural. E quem escreveu o livro foi uma “Senhora” de 60 anos. Até poderia ser comum uma senhora escritora de 60 anos escrever sobre “auto-ajuda”; “livro-psicografado”; “coisas religiosas”; “memórias-reais” e outras baboseiras suaves e entediantes, que infestam as livrarias (e o pior é que estas porcarias vendem!). Mas não com Hilda Hilst. Não há como enquadrar Hilda Hilst dentro do padrão médio de uma mulher brasileira de 60 anos. Hilda Hilst é um fenômeno, tanto poeta como prosadora.

O professor Alcir Péroca é quem prefacia o livro e diz, com uma grande bagagem de experiência: “Contos D’Escárnio é o terceiro livro da tetralogia obscena de Hilda Hilst. Se fosse necessário resumir o seu enredo, não haveria muito o que dizer, pois, como está patente em todo o livro, Crasso, o narrador, não tem nenhum gosto por seqüências arrumadas de fatos. Pretende escrever à maneira dos verbos chineses, sem marcação temporal, opondo-se programaticamente a qualquer expectativa de retomada da grande tradição do romance romântico-realista, com começo, meio e fim.”(p.5);

“Na costumeira louvação da esperteza do jeitinho nacional, Hilda reconhece perfeitamente o selo da cumplicidade geral da bandidagem contra a esperança do reconhecimento, de que a liberdade da literatura poderia ser a principal caução. Assim, a moral de sua anti-história é a de que onde triunfa a idiotia, o abestado, não resta ao narrador honesto senão o desengano e o suicídio.(...) Em terra de pornógrafos, para Hilda Hilst, o que cabe ao escritor sério é a revelação da pornocracia, isto é, da violência hegemônica da identidade bandalha.”(p.7).

“Meu nome é Crasso. Minha mãe me deu tal nome porque tinha mania de ler História das Civilizações. E se impressionou muito quando leu que Crasso, um homem muito rico, romano, foi degolado e teve a cabeça entupida de ouro derretido por algum adversário de batalha e conceitos. Mamãe morreu logo depois de me dar esse nome. No dia seguinte ao meu batismo. Dizem que foi um ataque fulminante, que eu estava logicamente no berço ou no peito quando ela falou: Crassinho. Suspirou e morreu. Era linda, elegante, gostosa, segundo meu pai, que morreu um mês depois. Só que a morte dele foi diferente. Morreu em cima de uma mulher nada elegante mas muito mais gostosa que mamãe, segundo me disseram. A mulher era puta, daquelas rebolantes, peitudas, tetas em riste. Os homens gostavam assim naquela época.”(p.13);

“Querida Clódia: há algumas coisas para te dizer daqui do meu voluntário exílio. Por exemplo: quando eu morrer, quero que ao invés das bolinhas de algodão que usualmente colocam nas narinas do morto, que você providencie bolinhas de pentelho de virgem. Sei que será uma estafante tarefa porque primeiro: não há virgens. Segundo: as que seriam virgens são impúberes e portanto sem pentelhos, glabras... Outra coisa importante: pinte uma vagina dentro de uma casca de ovo, com nuances bleu foncé e negro, e estando eu morto coloque a pequena tela no bolso da minha calça. Do lado direito. Enquanto coloca, alise com brandura meu caralho-prega (este que eu agora aliso enquanto te escrevo e que está tudo aquilo túrgico, duro, aceso, pulsante, vibrátil, túmido,sem que os amigos ao redor do esquife percebam, para não ficar constrangedor para mim, percebes?)” (p.80);

“Líria me contou que antes de conhecê-la, o professor Gutemberg só pensava na morte. Era triste sábio e profundo. Sua caceta sempre foi magnífica mas o desempenho era prejudicado pela leitura excessiva. Sabia História como ninguém, e boa parte de sua antes-surdez e melancolia era devido à História. Dizia à Líria que a Humanidade continuará seu caminho demente, que somente um idiota não vê que os homens continuarão per secula seculorum a cometer desatinos imundícies baixezas escroterias, e que as religiões e as igrejas haviam criado as guerras a miséria a loucura a culpa.”(p.95)


Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930 e faleceu em 04 de fevereiro de 2004, aos 73 anos. Poeta, ficcionista, dramaturga, publicou seu primeiro livro em 1950: “Presságio”. Escreveu por mais de 50 anos, sendo reconhecida hoje como um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea.

“Contos D’Escárnio/ Textos Grotescos” é de 2001, publicado pela Editora Globo, São Paulo, 136 páginas.