Ler não é tão importante
"O psicanalista e professor de literatura Pierre Bayard pede aos colegas: parem de fingir que lêem tudo e admitam que não é essencial ler um livro até o fim.
por Rita Loiola (Revista Superinteressante)
Pierre
Bayard chega para a entrevista com o cabelo desarrumado, uma pasta de
couro atulhada de livros e, embaixo do braço, o Libération, um jornal
da esquerda francesa fundado pelo filósofo Jean-Paul Sartre. Não parece
nem um pouco o mesmo sujeito que vem pedindo a seus colegas que
confessem não ter lido todos os livros que citam nas notas de rodapé
dos estudos acadêmicos. Psicanalista e professor de literatura na
Universidade Paris 8, Bayard escreve ensaios com títulos que parecem
picaretagem, do tipo Comment Améliorer les Oeuvres Ratées (“Como
Melhorar as Obras Fracassadas”, sem edição brasileira) ou Como Falar de
Livros Que Não Lemos, que virou best seller nos EUA, na Inglaterra e
na França e acaba de ser lançado no Brasil. Apesar dos títulos, Bayard
fala sério. Para ele, o que nos afasta dos livros é justamente a
exigência de ler e a culpa por não conseguir ler obras inteiras. E é
mais importante saber situar um livro num contexto que lê-lo
inteiramente. No tradicional Café Zimmer, em Paris, (que era
freqüentado pelos escritores Émile Zola e Proust, autores que ele apenas
percorreu), Bayard afirma que é errado tentar impor regras para a
leitura. “Ler um livro da primeira à última linha é uma entre mil formas
de leitura que existem”, diz.
Quer dizer que é possível ser culto sem ler um único livro inteiro?
Sem
ler uma obra da primeira à última linha? Sim, claro! Para uma pessoa
realmente culta, o mais importante não é ter lido várias obras por
completo, e sim saber se orientar, situar o livro e o autor dentro de
um conjunto, para poder compará-los e relacioná-los com outros. É como
um encarregado do tráfego ferroviário: ele precisa estar mais atento ao
conjunto de vagões e ao cruzamento dos trens do que ao detalhe do
interior de um vagão. Ter essa visão do conjunto é muito mais
importante do que saber detalhes do interior de um livro.
Quase todo mundo defende que uma pessoa precisa ler muito, mas nem todos lêem? Por quê?
É
justamente essa obrigação de ter que ler que nos impede de chegar aos
livros. Sacralizamos tanto os livros, o fato de ler e ter que guardar
todas as informações e detalhes dos textos, que acabamos morrendo de
medo das palavras e, então,... não lemos. Prefiro evitar todo tipo de
“dever” ou “obrigação” sobre esse assunto. A leitura é um ato de
liberdade. Não há como impor regras a ela.
Como assim?
Eu,
por exemplo. Nunca li o Ulisses, de James Joyce, e nem pretendo. E nem
por isso deixo de conhecê-lo. Sei que a história se passa em apenas um
dia, tem a ver com a Odisséia, de Homero, e sei de vários detalhes que
me permitem ter uma ótima conversa sobre o texto com quem quer que
seja. E para isso não preciso mergulhar em suas páginas. Quer ver outro
ótimo exemplo? Todo mundo fala da Bíblia, mas são raríssimas as pessoas
que a leram do começo ao fim. E, no entanto, é um dos livros mais
citados do mundo. Há milhares de formas de abordar um livro e não
somente sua leitura integral.
E um desses jeitos é justamente a não-leitura?
A
relação com a leitura é complexa. Entre a leitura e a não-leitura há
uma infinidade de graus. Não podemos achar que a leitura da primeira à
última linha é a única existente – até porque muitas vezes não fazemos
isso. Podemos simplesmente percorrer as páginas do livro, ou ler o
título e a orelha, ou então passar os olhos por um ensaio sobre a obra
sem nunca tê-la entre as mãos. Um livro também pode entrar na nossa vida
e fazer parte dela quando ouvimos falar sobre ele. Ler ou ouvir o que
os outros dizem são atitudes que fazem com que tenhamos uma idéia e um
julgamento sobre o seu conteúdo. E tudo isso já é uma relação com suas
páginas, é também uma forma de ler.
Não precisamos sentir culpa ou vergonha por não ter lido as grande obras?
Não
– é muito melhor ser sincero com si próprio. A obrigação de ler os
clássicos ou de ler os livros do começo ao fim é tão grande que faz
muita gente mentir que leu, até mesmo professores universitários.
Instaura-se assim uma mentira coletiva da cultura sem lacunas, de que
devemos nos angustiar por não termos tanto quanto poderíamos. Mas não
precisamos ter vergonha nem culpa. É melhor praticar a não-leitura
ativa, ou seja, admitirmos que não lemos tal obra e, mesmo assim, falar
sobre ela.
Você fala sério quando sugere que a não-leitura seja ensinada nas escolas?
Eu
prefiro não dar conselhos. A idéia do que escrevi é mostrar uma forma
leve e divertida de tirar a culpa do leitor por ele não ter lido essa
ou aquela obra. Fazer com que as pessoas reflitam sobre a ação de ler,
percam o trauma e, mais aliviadas, possam ler mais e livremente. Depois
que os livros saíram, dezenas de pessoas vieram me confessar que
ficaram mais calmas depois de perceber como ficam culpadas por não ter
lido as grandes obras.
Se não temos a obrigação de ler tudo, por que alguém deveria ler seu livro?
Não
deveria. Eu escrevo pensando em pessoas que se interessam pelos livros
e que gostam de refletir sobre hábitos de leitura. Estudantes,
professores, pessoas que estão na área das letras. Ninguém tem a
obrigação de ler o que escrevi. Não quero dar conselho algum, da mesma
maneira que não concordo com a idéia de que alguém “deve” ler Marcel
Proust, “tem que” ler James Joyce.
Então podemos falar de livros que não lemos?
Sim,
é até melhor que a gente fale sobre um livro sem tê-lo lido
completamente. Um debate nunca se limita a um livro: geralmente acaba na
discussão sobre nossas noções de cultura e literatura. Se eu tiver as
mesmas idéias e referências idênticas às das pessoas com quem estou
conversando, qual a graça? Aí não existe uma boa discussão, não existe
troca de idéias, não existe prazer. A boa discussão está em nunca
conhecer tudo.
Não há o perigo de incentivar a preguiça de ler?
Não
quero de modo algum dizer que não precisamos dos livros. Eu adoro ler,
leio muito e não escrevi um tratado para que as pessoas parem de ler. A
idéia é somente tirar o livro do pedestal do sagrado em que ele está.
Quem incentiva a preguiça é a exigência de ler. Na escola, os alunos
são obrigados a decorar detalhes do texto. Isso os afasta da leitura.
Se o aluno não tem uma memória de elefante, pronto, vai mal na prova. A
temida ficha de leitura, por exemplo. Eu nunca consegui fazer uma
ficha de leitura decente na minha vida, porque tenho uma memória
terrível. E meu filho, quando passou por essa tortura, me disse que era
esse trabalho de decorar personagens e o enredo que o desencorajava a
ler. Foi aí que comecei a pensar sobre esse trauma e sobre os milhares
de caminhos que existem quando se trata de literatura.
Você fala que a “desleitura” é um desses caminhos. Dá para ler um livro se esquecendo dele?
Assim
que terminamos um livro entramos em um movimento direto rumo ao
esquecimento. Vamos esquecendo as passagens, as palavras, e acabamos
transformando a obra lida em algo completamente diferente. Se li todo o
Crime e Castigo e depois esqueci, isso quer dizer que eu li o livro ou
não? E se não me lembro de nada? Se apenas o folheei, isso quer dizer
que não li? Se alguém tem uma péssima memória – como eu –, acaba
esquecendo inclusive se leu ou não o texto. Mas, cada vez que citamos a
obra, ela vai se tornando outra coisa, vai mudando. É isso que eu chamo
de desleitura, esse movimento pessoal rumo ao esquecimento.
Isso é bom ou ruim?
É
bom. O filósofo Montaigne, por exemplo, era um esquecido célebre. Há
passagens dos Ensaios em que ele diz que as pessoas mencionavam seus
escritos e ele não percebia. Imagino que minha memória seja ruim como a
dele. Já precisei reler meus livros porque os jornalistas começaram a
solicitar entrevistas e eu não tinha idéia do que estavam falando. Mas
isso faz também com que possamos ter conversas enriquecedoras sobre
esses textos, porque nunca uma pessoa vai ter dentro de si o mesmo livro
que outra. Cada um adiciona coisas suas às obras que leu. Há
diferenças culturais que fazem com o que um livro possa ter infinitas
leituras.
Em
Como Falar de Livros Que Não Lemos, você dá conselhos e técnicas a
quem quer ter essa atitude. As dicas vieram de experiência própria?
Quem
vive no mundo da literatura, como no caso de professores como eu,
sabe, na verdade, que não é preciso ler para falar de livros.
Professores, críticos e jornalistas não têm tempo hábil de ler tudo o
que poderiam, e isso acontece desde sempre. Então por que não admitem
isso? Não é preciso decorar pontos e vírgulas para ter uma opinião sobre
as obras. Para essas pessoas, criei algumas técnicas. Mas não vou
enumerar para você porque eu sei que tem muita gente que vai comprar o
livro só por causa dessa parte. [Tudo bem, Bayard, nós mostramos algumas
de suas dicas no boxe abaixo.]
Você está ciente que o livro pode ser vendido como um guia dos picaretas da leitura?
Mas claro! Essa é a brincadeira, mas é muito melhor guardar segredo. Vai que o livro vira best seller também no Brasil.
Guia da não-leitura
As dicas de Bayard para você comentar livros que não leu*
Não tenha vergonha
“Não
há nenhuma razão, contanto que tome coragem, para não dizer
francamente que não leu este ou aquele livro, nem para se abster de
falar a seu respeito. Não ter lido um livro é a hipótese mais comum, e
aceitá-la sem se envergonhar é uma premissa para começar a se interessar
pelo que está verdadeiramente em jogo, que não é um livro, mas, sim,
uma situação de discurso.”
Invente o livro
“A
obrigação de falar de livros não lidos não deve ser vivida de maneira
negativa, em meio à angústia ou ao remorso. Para quem sabe vivê-la
positivamente, para quem consegue se livrar do peso de sua culpa e
prestar atenção na situação em que se encontra e em suas
potencialidades múltiplas, ela oferece, com a abertura da biblioteca
virtual, um autêntico espaço de criatividade.”
Imponha sua idéia
“Se
o livro é menos o livro do que o conjunto de uma situação de palavra
onde ele circula e se modifica, é a essa situação que é preciso ser
sensível para falar com precisão de um livro sem tê-lo lido. Pois o
livro não está em causa, mas, sim, o que ele se tornou dentro do espaço
crítico onde intervém e está sempre em transformação, e é sobre esse
objeto móvel que é preciso estar em condições de formular proposições.”
Fale de si próprio
“Se
tivermos em mente, nas múltiplas situações complexas analisadas por
nós, que o essencial é falar de si e não dos livros, ou falar de si
através dos livros – a única maneira, provavelmente, de falar
corretamente deles –, a percepção dessas situações se modifica
sensivelmente, uma vez que são os múltiplos pontos de encontro entre a
obra e a própria pessoa que é urgente enfatizar.”
* Extraído do livro Como Falar de Livros Que Não Lemos.
Pierre Bayard
• Tem 52 anos e dá aulas de literatura na Paris 8 – a mesma universidade que acolheu intelectuais como Lacan e Foucault.
• Nasceu em Amiens, uma cidadezinha do norte da França cujos habitantes são conhecidos pelo bom humor e pela ironia.
• Gosta de filmes americanos de aventura, como O Feitiço do Tempo, e até os utiliza como exemplos em seus ensaios.
•
Mudou com os pais para Paris aos 11 anos e descobriu que nasceu para o
mundo das letras. Escrever é o seu passatempo preferido desde os 14
anos."
Fonte: Revista Superinteressante.
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