O livro “Poe – 200 anos. Contos inspirados em Edgar Allan Poe” apresenta uma coletânea de contos de novos autores que se deixaram contagiar pela genialidade de um dos maiores escritores de todos os tempos. O livro foi organizado por Maurício Montenegro e Ademir Pascale, os quais também contribuíram com seus contos (ver relação abaixo). Em 138 páginas, esses 22 novos escritores nacionais provam que têm talento e que a fonte de inspiração para escrever varia de pessoa para pessoa, em gênero, número e grau. Não há receita ou modelo pré-estabelecido. Dizem que escrever requer talento e domínio pleno da palavra, além, é claro, de 99,99% de inspiração. Assim como Edgar Allan Poe influenciou escritores do mundo inteiro, e ainda mantém este poder, estes 22 escritores trouxeram à tona contos que mereceram a impressão. Uma grande homenagem ao mestre dos mestres, Edgar Allan Poe. Parabéns aos novos talentos da literatura brasileira contemporânea. A seguir a relação dos contos com seus autores e por fim a transcrição do Prefácio.
- O Outono de Hatlen, de Maurício Montenegro;
- O Gato Branco, de Alex Lopes;
- O Vale das Montanhas Azuis, de Ronaldo Luiz Souza;
- O Frade, de O. A. Secatto;
- A Máscara de Vênus, de Mariana Albuquerque;
- Delírios Extraordinários, de Luciana Fátima;
- A Condessa de Nulle’part, de Thiago Félix;
- Relíquia, de Duda Falcão;
- O Sorriso de Berenice, de Alícia Azevedo;
- Um Homem Afortunado, de Kathia Brienza;
- O Hospedeiro, de Márson Alquati;
- O Estranho Passageiro de Birgit, de M. D. Amado;
- Before, de Deborah O’Lins de Barros;
- Eterna Primavera, de Dimitry Uziel;
- O Senhor do Inferno, de Georgette Silen;
- A Cartomante, de André Catarinacho Boschi;
- A Mudança, de Frank Bacurau;
- Intermezzo, de Gil Piva;
- Inferno no Circo, de Jocir Prandi;
- Louco, Eu?, de Ademir Pascale;
- O Quarto Caso de Dupin, de Miguel Carqueija;
- Memórias Póstumas de Edgar Allan Poe, de Roseli Princhatti Arruda Nuzzi.
PREFÁCIO (p.9/13)
O Mistério de Edgar Allan Poe
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
A encadear-me, o meu mistério.
Edgar Allan Poe, Só.
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
A encadear-me, o meu mistério.
Edgar Allan Poe, Só.
Para quem viveu tão curta vida — faleceu em 7 de outubro de 1849, aos quarenta anos — Edgar Allan Poe deixou uma obra extensa, eclética, impressionante, e eu direi mesmo: sem precedentes. Sacudiu a literatura, que nunca mais foi igual depois dele. Podemos encontrar a influência de Poe em importantes escritores pósteros, como Júlio Verne, Conan Doyle, Robert Louis Stevenson, H. P. Lovecraft, Clifford D. Simak, Ray Bradbury, Jorge Luis Borges, John Dickson Carr, Ellery Queen e muitos outros, inclusive brasileiros como Alvares de Azevedo e Machado de Assis.
Já foi dito que ele é o pai de todos. Sua obra abrange um grande leque de gêneros: o conto de terror e sobrenatural, de crime e perversidade, o policial detetivesco, a ficção científica, a narrativa de viagens e aventuras, o poema mórbido e, até, cósmico, o conto fantástico de humor e mesmo o ensaio cosmológico, seu livro Heureka. A nós, por ora, interessa especialmente a sua contribuição para o conto e a novela.
A vida de Poe foi trágica e atormentada. Pobreza, graves problemas de família, a fraqueza pelo álcool, tudo isso dificultou terrivelmente a vida e a obra do gênio. Não podemos, de fato, imaginar até onde ele teria ido, vivesse e escrevesse até os oitenta anos. Hervey Allen, um de seus biógrafos, comenta sobre a inglória luta de Poe contra os fados que o perseguiram por toda a vida:
Advertido pelo que fôra uma quase aproximação da morte em Filadélfia, Poe lutou com todas as forças que lhe restavam para abster-se da bebida, e durante algum tempo conseguiu-o. (Notícia bibliográfica, no volume Poesia e Prosa — Livraria do Globo, Porto Alegre, 1960).
É uma felicidade que uma vida tão curta e atormentada possa haver produzido obras tão primorosas. Nos contos de Poe, variando embora os assuntos, notamos à primeira vista alguns caracteres recorrentes: a narrativa em primeira pessoa (salvo algumas exceções), o detalhismo sem concessões ao supérfluo, e a capacidade em prender a atenção logo às primeiras palavras. Sobre este ponto podemos mencionar alguns exemplos:
Vós que me ledes, por certo estás ainda entre os vivos; mas eu que escrevo, terei partido há muito para a região das sombras. (Sombra).
Durante todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, eu estive passeando sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto da melancólica Casa de Usher. (A queda da Casa de Usher).
Permiti que, por enquanto, me chame William Wilson. A página virgem, que agora se estende diante de mim, não precisa ser manchada com meu nome verdadeiro. (William Wilson).
O conhecido Charles Baudelaire, em seu estudo Edgar Allan Poe (reproduzido no citado volume Poesia e Prosa), descreve um pouco dos métodos do escritor: Sua solenidade surpreende e mantém o espírito alerta. Sente-se, desde o princípio, que se trata de algo grave. E lentamente, pouco a pouco, se desenrola uma história, cujo interesse inteiro repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto, sobre uma hipótese audaciosa, sobre uma dosagem imprudente da Natureza no amálgama das faculdades. O leitor, tomado de vertigem, é constrangido a seguir o autor em suas arrebatadoras deduções.
Um tal literato deveria necessariamente interessar ao cinema; todavia o caráter intimista dc seus escritos não os torna facilmente filmáveis, daí que, considerando a idade da sétima arte, relativamente poucas adaptações foram feitas. Notabilizaram-se as do produtor e diretor Roger Corman, que homenageou Poe lançando várias obras-primas, como O corvo (1963), reunindo diversos astros do filme de terror, a saber Bons Karloff, Peter Lorre, Vincent Price e Jack Nicholson.
Voltando aos contos, Poe moveu-se à vontade em diversos gêneros. Produziu até humorismo, como se vê em O sistema do Dr. Breu e do Professor Pena, que fala de um hospício onde os diretores são loucos, deliciosa peça de humor que pode mesmo, quem sabe, ter motivado Machado de Assis a redigir sua satírica novela O alienista.
No conto de perversidade e crime penetrou a fundo no íntimo do criminoso, que cava o seu próprio abismo como se vê em William Wilson, terrificante drama em torno do conceito do duplo, o outro eu — a tragédia de um homem que luta contra a sua própria consciência.
Na ficção científica Poe foi um surpreendente precursor. Previu a viagem à Lua em A aventura sem par de um certo Hans Pfaall, onde, por maior requinte, aparece até um OVNI. Previu a descoberta do Pólo Sul em Manuscrito encontrado numa garrafa e a travessia aérea do Atlântico em A balela do balão.
Poe é geralmente considerado o criador do conto e do romance policial, tendo apresentado o primeiro detetive de ficção, o cavalheiresco francês C. August Dupin, que aparece em três notáveis narrativas, Os crimes da Rua Morgue, O mistério de Maria Roget e A carta furtada. O detetive que resolve enigmas por dedução e análise, muitas vezes biografado por um admirador (como Watson em relação a Holmes) tem em Dupin seu primeiro exemplo, primeiro de uma imensa galeria onde foram surgindo Hercule Poirot, de Agatha Christie; Solar Pons, de Augusth Derleth; Nero Wolfe, de Rex Stout; e tantos mais.
Curiosamente, em Poe a mulher é vista com uma espécie de veneração onde a morte funciona como um meio de preservação. Daí a incessante, obsessiva lembrança de Ligéia e de Lenora.
Com toda a sua melancolia Poe cultivava o belo, a harmonia, a natureza. Escreveu contos onde o único assunto era a descrição de paisagens: O domínio deArnheim ou o jardim-paisagem e A casa de campo de Landor. Era objetivo em relação à Ciência e todo o seu espírito exibe, como revela a análise de sua obra, uma sensibilidade extrema, a um grau que poucos seres humanos poderiam alcançar.
Nutrindo de longa data o interesse por este autor, ao escrever o romance “Farei meu destino” veio-me a ideia de visualizar o que seria Poe no além-túmulo, como já o havia feito Bradbury. A posição de Poe como mestre espiritual surgiu com grande espontaneidade, pois eu reconhecera, no beletrista, o que ele próprio chama o meu mistério. Daí as palavras que eu coloco nos lábios da personagem lolanda:
Mas o senhor é um homem admirável. É aquele que conhece os segredos da vida e da morte, e já os conhecia quando era vivo. Somente o senhor conhecia.
E isso incluía o mundo onírico, pois a poesia Um sonho num sonho parece conter o germe de inspiração para As ruínas circulares, do grande Jorge Luis Borges. A iniciativa dos escritores e organizadores culturais Ademir Pascale e Maurício Montenegro, homenageando Edgar Allan Poe numa antologia que comemora os 200 anos de seu nascimento (ocorrido em Boston, EUA, em 19 de janeiro de 1809) é especialmente admirável, por incentivar autores brasileiros a produzirem contos baseados na obra do Mestre. O que, de per si, representa um estímulo ao bem-escrever, à produção de textos profundos e significativos. E, enfim, estímulo à leitura da literatura de alta classe, como com certeza é a obra de Edgar Allan Poe.
Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2009.
Miguel Carqueija
Autor de “Farei meu Destino”, “O Fantasma de Apito” e “Tempos das Caçadoras”.
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