quinta-feira, 30 de junho de 2011

Se um viajante numa noite de inverno. Italo Calvino


“Se um viajante numa noite de inverno”, lançado na Itália em 1979, é um dos mais recentes e elogiados romances de Italo Calvino. Investido de uma das maiores preocupações da ficção em nossa época, o livro empreende uma reflexão sobre a linguagem do romance, rastreando e ironizando as múltiplas direções da narrativa contemporânea. Desse modo, volta-se sobre seu próprio tema, numa atitude lúdica e lúcida. O romance interrompe-se, interroga-se, cancela-se, mas conquista o leitor com esse movimento, que acentua o fato de estarmos sempre lidando com o espaço do imaginário. A esse respeito, Susan Sontag, uma das maiores expressões da literatura americana de nossos dias, comentou com agudeza: “Nessa cidade invisível a literatura mundial —, Italo Calvino é um dos grandes. Ele é também o maior ficcionista italiano contemporâneo... Na suave e irônica utopia de Calvino, a relação do leitor com o livro é uma relação de desejo”.

Considerado um dos mais originais escritores da atualidade, Calvino escreveu uma vasta obra, composta de mais de vinte livros publicados, entre contos e romances. Seu nome passou a ser conhecido com a publicação da trilogia “Os nossos antepassados”, formada por três romances: “O visconde partido ao meio”, “O barão rompante” e “O cavaleiro inexistente”. Tendo começado com uma postura realista, o autor evoluiu para uma concepção mais livre, freqüentemente tocada por aspectos fantásticos. Arquiteto exigente da matéria verbal, sua realidade mais imediata, o escritor criou um estilo muito pessoal, e infundiu à língua italiana novas cores e possibilidades. O recurso ao absurdo serve-lhe para sublinhar a perspectiva crítica com que aborda o mundo e o homem. Pode-se dizer que, nele, o absurdo das situações e das personagens dá-se num plano aparente, conformando uma estratégia que penetra nos desdobramentos últimos da realidade.

Filho de pais italianos, Calvino nasceu em Santiago de las Vegas (Cuba), a 15 de outubro de 1923. Logo após seu nascimento, a família voltou para a Itália, passando a morar na Ligúria. Adquiriu, desde muito jovem, uma clara consciência dos problemas sociais e políticos de seu tempo, e, quando sobreveio a Segunda Guerra Mundial, não hesitou em aderir à luta contra o nazi-fascismo, aliando-se a outros partígiani, nas montanhas da Ligúria. Integrou as colunas das barricadas Felice Cascione, enfrentando soldados alemães e as tropas de Mussolini. Essa experiência como combatente inspirou seu primeiro romance, “il sentiero dei nidi di ragno” (1947). Seguiu-se uma série de contos e romances que marcou o seu envolvimento com as dificuldades sociais da Itália contemporânea e, principalmente, com a sua região, a Ligúria. 

Em conseqüência de seu engajamento, Calvino chegou a colaborar com o diário comunista ‘L’Unitá”, fundando com Elio Vittorini, nesse mesmo período, uma revista de vanguarda, “Ii Menabó”, que produziu, no fim da década de 50, uma seqüência de importantes debates sobre o papel dos intelectuais frente à crise das ideologias e sobre o problema específico da profissão de escritor. Apesar de uma trajetória marcada pela mudança, Italo Calvino jamais renunciou aos valores humanistas, mantendo sempre sua coerência e generosidade ética. (p.245/246)
Italo Calvino (1923-1985)

domingo, 19 de junho de 2011

O atelier silencioso. David Douglas Duncan

Este álbum de fotografias de David Douglas Duncan completa um trabalho desenvolvido ao longo de vinte anos, uma série de estudos intimistas sobre uma personagem quase legendária da qual David Douglas Duncan era vizinho:  Picasso. O atelier silencioso é a continuidade de obras anteriores: The private world of Pablo Picasso, 1957-58, Picasso’s Picassos, 1961, e Goodbye Picasso, 1974.
O atelier silencioso constitui um tour de force fotográfico não há legendas através do qual Duncan nos leva a visitar pessoalmente o atelier-residência de Picasso em Mougins, na Côte d’Azur. Nenhum outro fotógrafo foi autorizado a penetrar nos cômodos do artista, que foram fechados após sua morte. Duncan também foi o único a fotografar Jacqueline Picasso desde então. (Os herdeiros de Picasso e o governo francês solicitaram a David essa documentação de Notre-Dame de Vie.) Como o autor observa no prefácio, o atelier silencioso de Picasso representa seu último auto-retrato.
O atelier silencioso compreende todas as telas que Pablo Picasso pintou de Jacqueline e com as quais a presenteou. Entre essas obras, pela primeira vez reunidas neste álbum —, encontra-se sem dúvida o retrato mais obsedante do século XX. Nenhum testemunho comparável apareceu, após a sua morte, sobre o atelier dos outros “grandes” da arte contemporânea: Van Gogh, Cézanne, Klee, Matisse, Giacometti, Braque. A amizade de Duncan por Pablo e Jacqueline brilha em cada uma das fotos do álbum, que representa, acima de tudo, a epopéia de um amor narrada em linguagem pictural.

David Douglas Duncan é jornalista e fotógrafo. Seu cargo de correspondente de guerra e sua paixão pela arte conduziram-no a freqüentes viagens pelo mundo. Como fuzileiro naval dos Estados Unidos e depois fotógrafo da revista Life, enfrentou diversas vezes a onda de violência que sacudiu o mundo nos últimos trinta e cinco anos. Nesse tempo, fotografou assuntos tão diversos como os tesouros do Kremlim, a captura de uma lula gigante nas costas da América do Sul, a migração das tribos nômades Qasqhai do Irã, novos aspectos de Paris vista através de um aparelho prismático, as convenções presidenciais de Miami Beach e Chicago, que polarizaram os movimentos de protesto da juventude contra as tradições políticas norte-americanas, mais a vida e a obra de seu amigo e vizinho Pablo Picasso, com sua mulher Jacqueline, em suas residências-atelier do Midi da França.
A qualidade alcançada na edição brasileira de O atelier silencioso tornou-se possível graças ao seu lançamento como parte de uma co-edição simultânea para diversos países e diretamente supervisionada pelo autor. O alto padrão artístico e técnico das fotos de Duncan encontrou essa resposta qualitativa na gráfica Braun, de Mulhouse, na França, onde foi impressa a obra. A Braun, trabalhando há mais de um século em colaboração com museus, editoras e colecionadores particulares, adquiriu a reputação de a mais séria oficina de heliogravura e reprodução de obras de arte de nosso tempo. Por esse motivo foi a escolhida pelo autor para a execução deste trabalho, resultado final da estreita cooperação entre Duncan e essa gráfica européia.
O atelier silencioso é ainda uma das mais importantes obras fotografadas, escritas, paginadas e publicadas pelo autor, tendo participado da primeira exposição consagrada a um só fotógrafo no Museu Whitney de Arte Americana.
David Douglas Duncan






sábado, 18 de junho de 2011

A História de O. Pauline Réage

“A história de O” é um romance cercado de mistérios. De autoria incerta (Pauline Réage é um pseudônimo), o livro saiu pela primeira vez em 1954 e até recentemente só era encontrado em edições clandestinas. A atitude corajosa do editor Jean-Jacques Pauvert, que já editara as obras clássicas de Henry Miller e do Marquês de Sade, tornou possível sua divulgação. Ao receber os manuscritos originais diretamente das mãos de Jean Paulham, membro da Academia Francesa e então diretor da publicação literária “Nouveile Revue Française”, Pauvert percebeu que tinha em seu poder “um dos grandes livros reveladores de nossa época” e que nada o faria mudar a decisão de publicá-lo.

Mas a mesma reação não tiveram os juízes e censores da França, que proibiram a distribuição e divulgação da obra logo após a publicação, sob a alegação de que “atentava contra os bons costumes”. Pouco adiantou um intelectual de renome como Jean Paulham ter assinado o prefácio, ou escritores de prestígio como André Gide, Valéry Larbaud e Saint-John Perse terem ostensivamente defendido as qualidades do romance. “A história de O” foi definitivamente proibida. Mesmo assim, sucessivas edições clandestinas continuaram a circular em todo o mundo, o que serviu ainda mais para aumentar sua fama de obra pornográfica e maldita.

Enquanto isso, sensatamente, o autor de “A história de O” permaneceu incógnito. Ainda assim, sob o mesmo pseudônimo de Pauline Réage, publicou outros dois livros: “Retour à Roissy” (uma espécie de continuação de “A história de O”) e “Une Fille Amoureuse”. Hoje, muitos críticos acham que o autor que se esconde sob o nome de Pauline é o próprio Jean Paulham, embora este, enquanto vivo, sempre tenha negado essa possibilidade. Alguns outros, entretanto, acreditam que se trata de um amigo de Paulham, também membro da Academia Francesa, e que não quis revelar seu verdadeiro nome por temer algum tipo de represália. Outros vão além, afirmando que o autor da discutida obra é uma militante feminista, que se utilizou do romance como um artifício para defender suas teses sobre o relacionamento entre homens e mulheres.

Em 1975, no lançamento da versão cinematográfica de “A história de O”, o livro voltou a ser notícia. Agora os tempos eram outros. Uma época de liberalização e permissividade tornava possível a publicação de livros eróticos sem risco de novos confiscos ou punições. A revista “L’Express” chegou a dedicar treze páginas de uma de suas edições ao romance. Além disso, o que correspondeu a uma verdadeira inovação para revistas desse tipo, prontificou-se a publicar a versão integral da obra em capítulos. “L’Express” obteve, ainda, após exaustivas negociações com o editor Jean-Jacques Pauveri, uma autorização para entrevistar o verdadeiro autor do livro, sob a condição de que seu nome jamais fosse revelado. Na longa entrevista que concedeu à jornalista e escritora Régine Desforges, autora de “A bicicleta azul”, Pauline Réage não deu nenhuma indicação de quem era, qual seu sexo, origem ou profissão. Desse modo, a identidade do autor de “A história de O” permanece um grande mistério.

Isso não impediu, entretanto, que o romance se transformasse num grande clássico da literatura erótica moderna, em que, para o escritor Pieyre de Mandiargues, sua heroína é “transfigurada por uma corrente que vem da alma e não do corpo”; segundo o próprio autor, “o amor abre caminho, na igualdade recíproca, para a criação de um universo mental, onde tanto o homem como a mulher podem se sentir inteiramente livres”. Com sua aparente violência e crueldade, tido como “casta”, por François Mauriac, e “de incrível decência”, por Jean Paulham, “A história de O” é uma obra que polemiza e antecipa a difícil convivência dos sexos no conturbado mundo contemporâneo. (p.191/193)

A trilha sonora do filme "Histoire d'O" (1975) ficou a cargo de Pierre Bachelet (mesmo autor do tema do filme "Emmanuelle"). A seguir trailer do filme disponível no You Tube e a versão cantada por Nicole Croisille "Je ne suis que de l'amour" (traduzido para "Eu só posso amar"). Um tema clássico, proporcionalmente ao livro e ao filme.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Socialismos Utópicos. Jean-Christian Petitfils

Durante este rápido exame histórico dos socialismos utópicos, da Antiguidade até nossos dias, procuramos descrever as grandes constantes dessa corrente de pensamento original, que parece conhecer um novo florescimento a cada grande crise do espírito, como se as agitações do momento incitassem os homens a buscar nos sonhos uma desforra da realidade: crise da cidade grega, crise do Renascimento, crise da consciência européia, crise da sociedade industrial, crise, enfim, da sociedade contemporânea.
No conjunto, essas constantes reencontram-se nas críticas que foram feitas pelos adversários do utopismo. A primeira, é de ter uma concepção racionalista da verdade que se deve impor por si mesma e triunfar sem problemas sobre o erro, como se em matéria social pudesse haver uma única resposta a todos os problemas que surgem. A segunda crítica é o conhecimento imperfeito da natureza humana e da extraordinária diversidade da vida. Daí a tendência dos teóricos a quererem tudo antecipadamente, a quererem prender os seres humanos em limites rígidos e tratá-los como simples marionetes, sob pretexto de criar um homem novo, pacífico, altruísta, econômico, trabalhador e dedicado à coletividade. A terceira crítica feita aos utopistas é de se inclinarem a uma atitude contemplativa, ou pelo menos de levarem, como disse Jean-Marie Domenach, “os espíritos generosos a negligenciar os obstáculos, os inimigos e os meios de combatê-los”. Pretendendo rejeitar tanto o caminho revolucionário como o caminho reformista, não corre o socialismo o risco de condenar-se à impotência? É certo que poderíamos demonstrar o papel criador do utopismo. A história fez nascer as utopias, mas estas fazem, por vezes, a história.
No nível teleológico, é preciso reconhecer que os pontos de convergência são menos numerosos. Cada modelo conserva sua originalidade própria, muito embora se inspire por vezes em doutrinas anteriores. Como poderia ser de outro modo, se a utopia surge muito mais como uma resposta pessoal às inquietações ou às angústias de uma época do que como uma resposta coletiva de um grupo de cidadãos? Também as soluções variam com o caráter dos indivíduos, indo do modelo espartano à utopia taitiana, do modelo estatizado e robotizado ao sonho de uma sociedade libertária e auto- administrada. Um grande número de utopias, entretanto, se inscreve numa visão metafísica do universo e busca, por meio de uma nova mística ou de um elo religioso reforçado, ligar a cidade terrestre à “cidade de Deus”.
Em relação aos séculos passados, nossa época parece marcar uma modificação bastante profunda nos objetivos das utopias sociais. Aquilo que apenas se ousava sonhar, antigamente, tornou-se uma realidade aflitivamente banal. Produzir objetos comuns em grande série, reduzir o tempo de trabalho em proveito do lazer, melhorar a “qualidade de vida”, tudo isso tornou-se possível graças ao progresso das ciências e das técnicas. Somente que, ao se concretizar, o sonho parece ter perdido seu sabor. Advém então o tempo das incertezas. Em nossos dias, os utopistas evitam dar-nos a visão de um futuro maravilhoso. Trata-se, em geral, de conter o crescimento, limitar os efeitos do que se chamou de “choque do futuro”. O discurso utópico fala menos, hoje, de libertação, de abundância ou simplesmente de felicidade do que de poluição, de ecologia, de “socialismo de sobrevivência”, como se o progresso fulgurante da humanidade, realizado desde há alguns anos, tivesse acabado por assustar as imaginações mais audaciosas. Há um tom novo, ousado, pessimista, que não encontrávamos no tempo dos pioneiros do socialismo. “As utopias são realizáveis”, já dizia Berdiaeff, “a vida caminha com as utopias. E talvez comece um novo século, um século onde os intelectuais e as classes cultas sonharão com os meios de evitar as utopias e de retornar a uma sociedade não-utópica, menos ‘perfeita e mais livre’.”
A atual proliferação das contra-utopias, na linha de Wells (Herbert George Wells) e George Orwell, descrevendo o futuro em termos apocalípticos, não será um indício precursor desse novo século profetizado pelo pensador russo? O interesse que se volta a evidenciar, hoje, pelos socialismos utópicos não anunciaria simplesmente o desaparecimento dessa forma de pensamento? Seria temerário — para não dizermos utópico! — acreditar nisso. É próprio do homem seu estado de perpétua insatisfação, que sem dúvida sempre o levará, pela magia do encantamento onírico, a romper as duras barreiras da realidade, a fim de sonhar mais livremente com a realização, na terra, dos nobres ideais de paz, justiça, igualdade e fraternidade. Tanto isso é exato que ele conserva, no mais profundo de seu coração, a doce nostalgia dos paraísos perdidos. (Socialismos Utópicos, p.181/183)