segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sete de setembro - Independência ou tornado? Airton Fontana

Foto de Alan Marcel Castaman
Consequência das mudanças climáticas no planeta ou não, o fato é que o fenômeno ocorrido em 07/09/2009, na região do extremo-oeste catarinense, foi realmente um tornado, uma catástrofe, que resultou na morte de várias pessoas, com dezenas de feridos e desabrigados. 

Especialistas chegaram a caracterizar o tornado que atingiu mais drasticamente o município de Guaraciaba, como um F4, dentro da escala Fujita, que vai até F5. Os ventos teriam chegado a 350 km/h. Há relatos de que veículos foram jogados a dezenas de metros, casas de alvenaria simplesmente sumiram, árvores adultas retorcidas como gravetos, vacas e porcos  mortos  ao serem jogados pro ar, aviários destruídos e até açudes foram sugados. 

Mas o livro do historiador Airton Fontana prima pelo registro de um documento histórico, fugindo do sensacionalismo, e trata do drama das famílias desabrigadas e o esforço da comunidade no socorro e na reconstrução da área atingida. Com depoimentos dramáticos de pessoas que testemunharam o fenômeno, com fotos da destruição e a ação da sociedade em ajudar os atingidos, que contou com todos os municípios da regição.

O livro, com 168 páginas, traz depoimentos fortes, com fotos e registro da reconstrução da região atingida. O autor é Mestre em Educação e professor universitário.

A seguir a transcrição da Introdução do livro:

"Este livro pretende descrever parte da história vivida pelo município de Guaraciaba, especialmente das famílias atingidas pela passagem de um tornado no dia 7 de setembro de 2009.
O texto estrutura-se em três seções, além da introdução. Primeiramente, apresentam-se referenciais, explicações teóricas, técnicas sobre a formação e características do tornado. Na segunda seção, descrevem-se as histórias de vida de famílias entre tantas que viveram momentos marcantes e, certamente, fortes o suficiente para ficarem marcados na memória histórica. Essas histórias de vida foram em parte vivenciadas, observadas e pesquisadas a partir de entrevistas e conversas com famílias pertencentes a diferentes comunidades atingidas pelo tornado desde o momento em que o tornado passou até os primeiros dias de reconstrução e reabilitação das famílias e suas propriedades.
Em terceiro momento, relatam-se o processo de reação das famílias e a participação da sociedade nesse processo. Destacam-se o aspecto de solidariedade e o trabalho social voluntário de milhares de pessoas, pois, somente nos primeiros 60 dias de reconstrução, mais de cinco mil pessoas de outros 38 municípios da região, contabilizados pela coordenação, participaram com trabalhos de limpeza e reabilitação.
Foram dezenas de entidades, empresas que, somadas aos governos municipal, estadual e federal, auxiliaram com trabalhos, doações em dinheiro, roupas, água, alimentos e materiais de construção.
Com relatos, informações, observações in loco, acompanharam-se momentos de empenho dos familiares e sociedade na busca pela superação. Para melhor compreender, sentir e refletir a respeito dos dados, depoimentos, ações e histórias de vida, ilustram-se as imagens que retratam desde os primeiros momentos pós-tornado, como estradas interrompidas, casas e outras instalações danificadas até o momento de reação, seja com limpezas de entulhos, seja com a própria construção das benfeitorias.
Das pessoas atingidas, escolheram-se 25 famílias para ilustrar este trabalho; entende-se ser um número suficiente para representar as histórias de vida vivenciadas nesse processo. Foram entrevistadas 35 pessoas, sabendo que mais de seis mil pessoas participaram nos trabalhos de reabilitação, com um ou mais dias de serviço voluntário ou de servidores públicos.
A falta de referenciais foi uma limitação deste trabalho. O que se apresenta de forma sucinta são as características e os elementos naturais formadores do tornado, destacando-se a pressão atmosférica, latitude, relevo, altitude e temperatura do ar.
As fotografias apresentadas constituem contribuições significativas de muitas pessoas e entidades; uma vez arquivadas, serão muito úteis à história do fenômeno destacado.
Acredita-se que a obra contribua com a história do município, especialmente com o registro de algumas informações e análises, evitando, assim, que algumas delas sejam esquecidas.
O autor sente-se na responsabilidade de contribuir com esse trabalho, pela oportunidade que a sociedade de Guaraciaba proporcionou em participar de forma ativa em sua história. Pensa ser uma maneira, inclusive, de reconhecer e valorizar o sofrimento, a resistência, a luta diante das adversidades severas da natureza.
Destaca-se a contribuição fundamental de pessoas e entidades na elaboração deste texto, na colaboração de informações, fotografias e na participação em geral." (in Introdução, p. 21/22)

A seguir, fotos retiradas no site "De olho no tempo":




sábado, 29 de janeiro de 2011

O volume do silêncio. João Anzanello Carrascoza

Por Marcelo Moutinho (escritor e jornalista).

Não nasce da falta – caso de Fabiano, em "Vidas secas" -, tampouco da recusa à palavra – como Mersault, em "O estrangeiro" -, o silêncio a que João Anzanello Carrascoza faz alusão logo no título de seu novo livro. Os contos que integram o volume lançado pela Cosac Naify abrem uma terceira possibilidade, propondo um contraponto à algaravia do mundo em histórias sussurradas, cerzidas em fiapos de enredos que tratam de situações aparentemente banais: uma viagem de negócios do pai em companhia de seu filho, o encontro entre dois casais amigos, a visita de um irmão depois de muitos anos.

"O volume do silêncio" reúne narrativas publicadas originalmente em antologias e nos livros "Hotel Solidão" (1994), "O vaso azul" (1998), "Duas tardes" (2002), "Meu amigo João" (2003) e "Dias raros" (2004), além de um texto inédito. A seleção, feita por Nelson de Oliveira, permite um interessante vôo sobre a trajetória do autor, evidenciando o processo de depuração estilística a que se submeteu, ainda que de modo inconsciente.

É o próprio Nelson quem afirma, no posfácio, que "a linha que separa o sublime do kitsch é invisível e se move o tempo todo". Nos contos mais remotos, Carrascoza claramente ultrapassa tal linha. Isso acontece, por exemplo, em "Caçador de vidro" e "O vaso azul", nos quais os comentários do narrador soam excessivos e parecem querer reiterar aquilo que já foi insinuado. À medida que o leitor avança nas páginas do livro, contudo, pode notar com nitidez a evolução do domínio do autor sobre a própria escritura. Fiel a seus temas mais caros – as minúcias da vida cotidiana, a infância, a dor e as delícias do amadurecimento -, o texto de Carrascoza ganha em sobriedade e precisão: as metáforas tornam-se mais nuançadas, o volume do silêncio aumenta.

Então nos deparamos com pequenas preciosidades como "O menino e o pião", relato da espera de um garoto por seu pai, que culmina com a cena do velho a observá-lo, do corredor às escuras, enquanto brinca, sozinho. "O menino não cogita que um dia esse cordel se partirá. E, sem ele, o pião jamais será o que foi, como a roseira não é mais a semente que a gerou, nem o sol, a poeira que se aglutinou para formá-lo, círculo de luz, esplendor", anota o narrador, reproduzindo a espécie de elegia que o pai experimenta ali.

Essa conexão entre imagens externas e sentimentos interiores, marca do trabalho de Carrascoza, repete-se em "Chamada", diálogo salpicado de não-ditos entre a mãe doente e a filha que vai para a escola. A mãe, com "os olhos inchados de insônia, nos quais ainda se podia apanhar a noite, como uma moeda no fundo do bolso"; a filha, sentindo o peso de deixá-la ao informar que seguirá para a aula: "A mulher escutou como se a filha nada tivesse dito senão Vou para a escola, mamãe, e ignorasse que existiam outras palavras, agarradas aos pés dessas, esguichando silêncio".

Embora raramente invista-se na primeira pessoa, o narrador de Carrascoza parece ganhar os olhos dos personagens, tal a sua proximidade. É o que ocorre quando expõe as dúvidas do garoto que, em "Dias raros", retorna das férias na casa da avó. Ele sofrera com a obrigação de ir, mas se dilacera ainda mais ao ter de voltar, sem compreender como duas vontades tão díspares puderam brotar em tão breve intervalo: "Sempre uma ida às coisas e sua seqüente despedida. Na mesma hora que ganhava a vivência, nele ela se perdia. Sorte que vinha outra, a cicatrizar a alegria ou a abrir nova ferida, também logo substituída. E as pessoas nesse renovar-se, envelhecendo (...) com suas raízes sujas de terra, cavoucando seus mistérios, bem-querendo-se (...). E todas, todas, o tempo inteiro, indo embora".

São assim, plenos de alma num tempo de estridências ocas, os personagens de Carrascoza. Enxergam a poesia possível nos pequenos acontecimentos; buscam, como queria Calvino, o que não é inferno no meio do inferno. Ainda que essa exceção responda pela simples imagem da mata, que arrebata o menino de "Travessia". "A terra, seca ou gelada pela chuva, não dizia para ele senão terra; a árvore, pousasse ou não nela um pássaro, não dizia senão árvore; (...) as coisas anunciavam o que eram, e no entanto ele já sabia que, além de terra, árvore, folha, elas diziam somos o que somos". Num movimento análogo à literatura de Carrascoza, o garoto via "imensidão naquelas miudezas".

Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Dois passos antes da esquina. Marcos Fernando Kirst


Em “Dois passos antes da esquina” (2009), o escritor gaúcho Marcos Fernando Kirst, revelando-se também um exímio romancista, apresenta-nos um romance intimista, denso e instigante. Um romance nos moldes do psicológico, em linguagem sóbria, muito mais que conservadora. Quase atemporal, pois a história nos dá a impressão de que lemos um livro “antigo”, não fossem alguns “links” contemporâneos, como “telefone celular”. O livro traz a história do protagonista Otto, um velho militar aposentado, recém viúvo, a procurar nas lembranças e reflexões sobre o passado um espécie de auto-conhecimento ou redescobrimento.
Como é dito numa das orelhas do livro: “Ambientada  em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, a história acompanha os primeiro dias de viuvez de um personagem que, aos poucos e de maneira imprevista, descobre que o íntimo das pessoas pode conter universos inesgotáveis a serem desbravados.”
Os capítulos receberam títulos, como eram comuns em romances capitulados em folhetins, aqueles de antigos semanários impressos. E há momentos em que esses capítulos, mesmo individualizados, mantém a consistência e a integridade, em passagens ricas, ternas, senão sublimes, como as transcritas a seguir:
A dimensão do amor que sentia por aquela mulher só ficou clara aos oitenta anos de idade, parado defronte à lápide que acomodava o corpo da esposa sepultada há duas semanas. Tragou profundamente toda a fumaça do cigarro e soltou-a devagar pelas narinas, usufruindo de novo o prazer que cultivava desde moleque e que ainda não o matara. Fitou mais uma vez o nome encravado na pedra e observou a foto, cuidadosamente escolhida junto com a filha mais velha para eternizar a imagem da mulher sobre aquele pedaço de terra no pequeno cemitério aos fundos da capela. Era então ali, dentro daquele buraco, escavado no interior do Rio Grande do Sul, que ela permaneceria de agora em diante, só esperando pela sua própria chegada para ocupar o espaço ao lado? Então era isso? Então é assim que as coisas se encerram?
Centelhas de lembranças voaram junto com a bagana do cigarro lançada fora no peteleco que antecedeu a meia-volta soturna em direção ao carro, no calor dos trinta graus que às vezes assola a terra vermelha daquelas paragens. Era domingo. Mas domingos haviam sido todos os dias de sua vida, desde a aposentadoria, há trinta anos. Reforma, no jargão militar. Três décadas de domingos junto a ela, desde então. Mas este domingo, domingo mesmo, assim, sozinho, taciturno, experimentando sentimentos que ainda não sabia identificar e traduzir, era algo diferente. Era o prelúdio de todos os domingos que viriam dali em diante, na busca pelo reencontro de si mesmo perante uma situação para a qual julgara ter se preparado durante os últimos meses. “( in “No cemitério” - p.13)
Acendeu a luz da saleta já tarde da noite e encaminhou-se para a estante dos livros, determinado a encontrar ali, entre os tantos volumes que pareciam se acotovelar para manterem-se eretos, um espaço para deixar O Nome da Rosa, agora lido e desvendado. Provavelmente algum intervalo entre aquelas dezenas de obras fora ocupado até recentemente por aquele livro que permanecia ainda seguro entre suas mãos, mas não haveria como reconhecer o lugar que Irma destinara a ele nos tempos em que ela, e somente ela, administrava e comandava aquele verdadeiro quartel de soldados impressos que pareciam formar fila em posição de sentido, aguardando somente a ordem de se apresentarem e revelarem, cada um, um universo novo e desconhecido. Tamanhos variados, cores variadas, texturas, volumes... cada livro exibia sua própria individualidade, igual aos batalhões de soldados que ele próprio comandara em vida, com a diferença de que raramente tivera a oportunidade ou mesmo o interesse de desvendar os mundos que cada um dos subordinados encerrava. Coisas da vida. Nem mesmo a própria individualidade ele era capaz de reconhecer nos últimos dias.
Lançou os olhos a um dos andares da estante que parecia menos compactado de lado a lado com os volumes e abriu espaço separando dois livros encadernados em brochura, onde enfiou aquele que nos últimos dias lhe fora companhia. Desacostumado ao manuseio daqueles objetos, empregou força e movimentos em excesso, provocando a queda de um pequeno volume que, sabe-se lá há quanto tempo, há quantos anos, repousava na horizontal na fila, sobre os outros que corretamente ali se empertigavam. O livro abriu-se em páginas no chão da saleta, revelando a fragilidade da encadernação, mas mantendo-se ainda intacto. Agachou-se prontamente para juntá-lo, como a temer que, deixando-o ali por muito mais tempo, acabasse colaborando para a destruição do pequeno objeto ao qual ela consagrava tanto carinho, assim como a todos os outros presentes ali, naquela sala de livros.
Juntou-o, tirou o pó e chamou-lhe a atenção a capa, ricamente ilustrada com um desenho feito à mão e colorido: um menino de calças curtas empoleirava-se no alto de uma árvore, olhando assustado para uma onça que rugia em seu encalço. Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Um susto, uma emoção e uma ideia embalaram seu sono naquela véspera de sábado e de nova partida rumo a Vila Molinos.” (in “Entre Páginas”, p. 118/119)
Sobre o autor. Nascido em Ijuí (RS), Marcos Fernando Kirst cursou Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e trabalhou em vários jornais, entre eles A Razão, em Santa Maria, e Pioneiro, em Caxias do Sul. Atualmente colabora com a revista Acontece e o jornal Informante (Farroupilha). Também desenvolve trabalhos editoriais para a editora Belas-Letras, de Caxias do Sul. Em outubro de 2008, lançou na Feira do Livro de Caxias do Sul o livro infantil O Gato Que Não Sabia de Nada, que trata de um gato com crise de identidade: não sabe se é gato, se é cachorro ou se faz parte de uma pilha de livros. A aventura, narrada pelo gatinho Bioy, é a estréia de Kirst em livro de ficção. A obra ficou entre as mais vendidas da feira. Na seqüência, o autor integrou a programação de eventos relativos às Feiras de Livros (lançamento, sessões de autógrafos e bate-papos literários) nas cidades gaúchas de Farroupilha, Ijuí e Porto Alegre. Antes desse livro, Kirst participou de antologias, venceu concursos literários e publicou o livro A História nas Estantes – 60 Anos da Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer.



quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Morangos Mofados. Caio Fernando Abreu

"Morangos Mofados", de Caio Fernando Abreu (Contos. Editora Brasiliense; São Paulo; 6º edição; 145 páginas, 1985). Como cenas rápidas de um trailer narrando histórias em busca de um sentido para o mundo. Ao fundo, músicas (rock, blues, tango, MPB) ajudam na composição do cenário, embalado em ritmo quase cinematográfico. Imagens explodem em palavras lapidadas, manifestadas em dores, angustias, fracassos, encontros e desencontros, esperanças, enfim, milhões de sentimentos misturados, costurados em pequenas teias a formar um enorme mosaico de emoções que marcou uma época. E ainda continua a identificar gerações e gerações que se sucedem após o lançamento apoteótico da obra.
 
Dividida em três partes, Morangos Mofados é, sem dúvida, a composição mais conhecida de Caio Fernando Abreu. A primeira parte, intitulada “O Mofo”, narra a queda de valores, dos amores, a solidão, a fragilidade humana, a embriagues, o consumo de drogas, o desespero, o desamor, a dor na forma mais fria e crua. Escrita de forma precisa, quase cirúrgica, Caio vai nos apresentando uma série de personagens anônimos, que ao final se personifica em uma única pessoa: o autor? Ou, quem sabe, até mesmo qualquer um de nós. 

O gosto amargo da derrota, cheirando a mofo, a vômito, a vodca barata, a cigarros. Uma melodia sentimentalmente melancólica ao fundo. Escuridão e desencontros. O gosto da solidão esculpida em delírios da alma. Encravada em labirintos tortuosos e escuros de forma magistral. A sensação é idêntica à saída de uma montanha-russa. 

“Os Morangos”. Aqui, uma paz tranqüilizadora invade de forma mágica a alma das personagens. Como se a existência de um final feliz fosse possível e breve, ou como se a vida fosse menos pesada. O doce levemente ácido do morango fundindo na língua, mostrando um belo dia de sol após uma tempestade. Mas o doce dá espaço para a acidez, transformando pedaços de magias em mágoas e solidão. Enquanto o dente fere o vermelho brilhoso do morango, na boca permanece o gosto azedo do preconceito, do medo, dos sonhos perdidos, das utopias transformadas em contas bancárias. O enjôo natural dos abusos. Dos delírios causados pelo excesso de cocaína.

Histórias envolvendo vagabundos (giramundos), hippies sem destinos, loucos, comunistas, yupes desenfreados, compulsivos, sargentos, preconceitos, estupidez, falta de amor. Dos sonhos de uma geração apodrecendo na latrina comum. Das vidas apodrecendo em latrinas fétidas comuns. A paz tão perto e tão distante que os rápidos movimentos de nossos olhos não conseguem captar. Tampouco poderiam.

“Morangos Mofados”. A terceira parte. Com os olhos fechados, ouço “Let me take you down, ’cause I’m going to Strawberry Fields. Nothing is real and nothing to get hungabout. Strawberry Fields forever.” Como se eu estivesse em um universo paralelo, um refúgio, um abrigo, uma morada longe, mas dentro, do caos urbano. Uma espécie de esconderijo para se abrigar da chuva tóxica, ou dos desatinos do coração. Enquanto imagens explodem diante de nossos olhos cansados, ao fundo, o som dos Beatles vai levemente aumentando, aumentando…

Caio nos deixa com a boca aberta, o livro nas mãos e o pensamento longe, imaginando: E se a vida fosse diferente? Para ler e reler sempre que a saudade – ou a dor – falar mais alto. Os morangos mofados, como estrangeiro em sua terra natal, ou girassóis no inverno enfeitando os pastos da Rússia, ou uma Guerra Santa… O cheiro e o gosto do mofo ultrapassam toda a simbologia poética do morango. (fonte: Eduardohb)


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

As Dez Maçãzinhas. Ofélia Dracs

O erotismo por quem sabe escrever, em histórias críveis, insuspeitas, com doses comedidas de excitação e surpresa, encanto e perplexidade. Contos digestivos e divertidíssimos, até para se ler a dois (ou mais). Não é má idéia.


"Vencedor do Prêmio La Sanrísa Vertical- 1979 - dedicado ao melhor da literatura erótica internacional – “As Dez Maçãzinhas” foi escrito por Ofélia Dracs. Mas quem é Ofélia Dracs? Possuidora de um imaginário erótico extremamente fértil, ela é o pseudônimo de oito conhecidos escritores espanhóis que, com isso, puderam liberar sem preconceitos toda as suas fantasias. Mas fizeram questão de se manter no anonimato. Afinal, o conteúdo destes dez contos é no mínimo comprometedor, para não dizer forte, apaixonante, explícito... " (contra-capa)

"...Escuta, por quatro paus ficamos um tempo, uma hora, cara, e por quinze, a noite inteira. E por uns cobres a mais, eu te chupo aqui mesmo, no carro, se é que isso te excita. Agora mesmo, se quiser. Sobe, não vai te acontecer nada de ruim... Você não tá legal? Não gostou de mim? Vamos nessa. Você viu as minhas coxas? Espera um pouco que eu já levanto a saia e te mostro. O que você acha? Ai, agora não dá para esconder: teus olhinhos têm um brilho de desejo que te delatam. Vem, se quiser eu levanto um pouquinho mais a saia. Quer ver a calcinha? Não, ainda não vou te mostrar. Daqui a pouco. Assim continua excitado. Só te digo que é branca e suave. E os seios? Você reparou nos meus seios? Vem cá, me dá a mão que te deixo tocar num deles..." ( in "A Piranha" - p.9 - Parte publicável). 


O restante do conto e outros? Só lendo o livro mesmo.

A morte de Bunny Munro. Nick Cave

"Bunny Munro é um vendedor de produtos de beleza. Não qualquer um, mas ‘O’ vendedor de produtos de beleza. Com um magnetismo sexual superado somente por sua líbido impossível de ser saciada suas vendas de porta em porta mais se parecem com cruzadas em que conquista os bolsos e corpos de suas clientes.
 
Bunny, porém, é um pai de família. Tem um filho de 9 anos, Bunny Júnior, e uma esposa, Libby. E ele os ama. Sua falta de controle e seu desprezo por tudo e todos, no entanto, destroem sua família. Com o suicídio da esposa, um filho esquisito para cuidar ao mesmo tempo em que descobre que o próprio pai está morrendo de câncer, Bunny não sabe aonde ir. E assim começa sua jornada recheada de drogas, tristeza e vaginas, em direção à morte, que ele pressente estar próxima.

Assim é o segundo livro do australiano Nick Cave, mais conhecido por seu trabalho como compositor e vocalista dos ‘Bad Seeds’ e do ‘Birthday Party’. O livro, aliás, possui um peso semelhante ao das músicas de Cave: uma ânsia sexual mal-reprimida perdida em meio a um mar de remorsos e de tristeza.

Uma espécie de Neil Gaiman em preto e branco, Cave é obsceno. Extremamente obsceno. Difícil uma página que não contenha uma palavra de cunho sexual. De baixo calão. E não existe um capítulo sequer em que Bunny não fantasie sobre as partes íntimas de Avril Lavigne ou de Kylie Minogue. Isso, porém, não faz com que o livro se torne menos bonito. Ao contrário, esse vocabulário ‘sujo’ e toda a perversão do anti-herói são muito bem utilizados. E existe ainda o contraste: em algumas partes em o foco narrativo é o pequeno Bunny Júnior, que é um garoto inteligente e curioso, de natureza gentil, e que idolatra e ama o pai com todas suas forças, fazendo com que em alguns momentos o livro se tornem bastante singelos.

Alguns elementos bizarros aparecem para dar um pouco mais de cor - ou, ao menos, alguns intrigantes matizes de cinza - ao romance: as aparições da esposa morta; um assassino que se veste de diabo e ruma do norte para o sul da Inglaterra, onde acontece a ação; um caminhão misturador de cimento com os dizeres ‘DUDMAN’ em sua lataria e as lembranças da vida pregressa de Bunny.

Eu sou um grande fã da música de Cave. E posso dizer que como escritor ele tem a mesma qualidade que como músico - ele consegue fazer exatamente a mesma coisa, despertar os mesmos sentimentos difíceis de nomear, em um romance sobre segundas chances, em um mundo em que elas não existem mais."

Autor: Luciano R. M.. Ele é estudante de medicina, mas prefere literatura e arte. Não acredita em médicos que não leram Dostoevski.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Céu de Lúcifer. Ronaldo Bressane

Livro contundente, prova de que não há limites para a boa literatura brasileira. É preciso competência, muito mais que coragem para se escrever como Bressane. Eis um dos principais motivos da minha preferência pelo contemporâneo. 

Há quem procure segurança na leitura de um livro, recheado de mesmice, subdivida ora em narração, descrição, dissertação, prosa, poesia, idioma, sintaxe, pontuação, desde que não se misture nada, muito menos se inverta algo. E o medo? Aahh! Isso não existe no universo maravilhoso, caótico e sufocante de Ronaldo Bressane. 

"Céu de Lúcifer" foi chamado sucintamente de "A cultura do tudo", pelo escritor Sérgio Sant'Anna, pois Bressane usa e abusa da cultura geral, do conhecimento humano contemporâneo, sempre com atmosferas esdrúxulas, dinâmicas, assustadoras ou desafiadoras. "Céu de Lúcifer" não é para o leitor comum, muito menos para o principiante, pois exige e muito. Uma satisfação para o ego de quem sabe, um estímulo para quem quer  mais conhecimento. Para os mais precavidos, um dicionário e uma enciclopédia ao lado, durante a leitura, irá ajudar e muito. Duvidam? Então eis a apresentação da obra pelo renomado escritor Sérgio Sant'Anna, nas orelhas do livro.

" A Cultura do Tudo
Céu de Lúcifer é o ultimo produto de uma trilogia [os outros são os provocadores “10 presídios de bolso” e “Infernos possíveis”], bafizada pelo autor de “A outra comédia”, numa referência nada grave à Divina Comédia, de Dante Alighieri. E ao cruzar os portais deste inferno paradisíaco, o leitor acomodado deve abandonar toda a esperança de ler um livro convencional de histórias. A prosa de Bressane, um dos mais talentosos e originais autores entre os que tem lançado as sementes de uma nova iconoclastia na cena da literatura brasileira mais recente, é uma prosa feita de estilhaços de linguagem, ritmos alucinatórios, constelações vocabulares e ficcionais.

Assim, não é à toa que o volume abre com “Jornal do caos”, em que um jornalista, saturado de informações, faz greve de uma semana, fechando-se a toda notícia da mídia para escrever um diário caótico, povoado de sexo e fantasias, encontros aleatórios, flashes literários, infotraficantes, terror e ecstasy.

Escrevendo sobre o agora, também é natural que Bressane vá buscar na catástrofe de 11 de setembro de 2001, no conto “WTCNY” outro motivo ficcional, em que uma brasileira motorista de táxi em Nota York, acaba por catar, para montá-los, os pedaços de seu amante poeta marroquino [poemas tatuados no corpo] soterrado nas escombros do World Trade Center.
O livro de Bressane viaja e muito, e é em Jacutinga [MG] em “Quando eu morrer”, que se dá a tragédia do locutor de rádio esfaqueado pela mulher adúltera num conto em que são evocados dois Rosas, Noel e Guimarães, este marotamente: “Viver, onde se encontra?” Fora as pérolas do sussurrante locutor Hermínio, João Gilberto do Dial: “toda mulher tem direito a uma maçã do amor envenenada”.  Muitas vezes bilingüe, Ronaldo e também capaz de criar a fala livre, recheada de invenções, de um camelô da praça da Sé, São Paulo,  em “O mundo é um moinho”. Mas talvez esteja em “Psicotrópico” um dos exemplos mais radicais da mixagem de Bressane para capturar o cruzamento estético e de comportamento do mundo contemporâneo.
Nessa narrativa, um repórter vai cobrir um extravagante dos festivais de música eletrônica e sons afins, reunindo, à beira da floresta amazônica, uma fauna variada, desde índios ticuna aos mais carimbados DJs e artistas de uma eclética música popular de invenção. E no meio de citações, pelo autor, de Villa Lobos e Fernando Pessoa, Picasso e Miró, a cultura do tudo que vai ter sua apoteose num “drumba de frequências subsônicas”... “o verdadeiro rock‘n roll em seu simulacro sintético”.
Há muitas coisas mais neste “Céu de Lúcifer”, inclusive a mini-epopéia, em sete peças marcadas por uma sintaxe e pontuação reinventadas do subherói Butthole Kongo, o macaco albino. Porém o espaço do apresentador é curto e ele tem partir logo para a definiçâo: “Céu de Lúcifer” percorre, apaixonadamente, trilhas de risco da nova literatura brasileira.
Sérgio Sant’Anna"(negritei)

Ronaldo Bressane