segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Contos Negreiros. Marcelino Freire


Pro leitor sentir o preconceito na própria pele. Foi meu segundo audiolivro. Há alguns meses, experimentei ouvir o primeiro: “A arte da guerra”, de Sun Tzu. Estava lá, em promoção numa banca de livraria. Barato, mas nem tanto. Não sou deficiente visual nem cego. Fiquei apenas curioso. Ouvi no som do carro, enquanto dirigia. “A arte da guerra” é muito monótono, quase chato. Lembro que “A arte da guerra” ficou famoso, em 2002, quando o técnico da seleção brasileira de futebol, o Scolari, disse que costumava se socorrer das idéias milenares, meio-parábolas, meio filosóficas, de Sun Tzu, colocando-as em prática nos times por ele treinados. Pobres coitados! Depois virou coqueluche entre os “executivos”, aqueles que não conseguem pagar “acompanhantes”, estimulados pelos “Marins” e “Lair-Ribeiros” da vida, principalmente aqueles “chefes” que adoram transformar empregados em soldados, ou melhor, em “escravos”. Chefe tradicional tem sempre um “quezinho” de feitor, daqueles cedeefes que estão sempre querendo mostrar serviço ao dono da empresa, sugando os empregados. Qualquer semelhança com a escravidão não é mera coincidência.

Escravidão? Bem! Este tema é uma ferida que incomoda muita gente. Em “Contos Negreiros” a escravidão é revista e revivida, há racismo, preconceito, prostituição, turismo sexual e variações dos mesmos temas. Uma coisa leva à outra e, no Brasil, associa-se intimamente à pobreza, miséria, violência, discriminação. Marcelino Freire cumpre os ditames da boa e excelente literatura em “Contos Negreiros”, pois entretém, faz crítica social, muito forte e contundente, e enriquece o leitor, aqui, no caso do audiolivro, o ouvinte. Envolvendo temas polêmicos, comuns e cotidianos, que estão enraizados na cultura brasileira, os contos tratam de uma maneira ou de outra do preconceito e da discriminação a que sempre esteve sujeito o negro brasileiro, ou o índio, sejam descendentes, ou miscigenados, os famosos pardos, meio mamelucos, cafuzos, pêlo-duros.

Talvez possa haver algum leitor, ou ouvinte, que, equivocadamente, apenas venha a se deliciar, sem refletir criticamente, nas narrativas irônicas e, quase sempre, hilárias, de “Contos Negreiros”. Poderia dizer: ainda bem que são histórias fictícias, mas não. São histórias que podem estar acontecendo todo o dia, em qualquer bairro mais pobre, ou favela de qualquer cidade brasileira. Os negros no Brasil desde sempre foram relegados. Sempre estiveram à própria sorte. Sua associação com a pobreza, a miserabilidade é fato social, é histórica, basta um pouco de bom senso e cultura para entender. Depois ficam discutindo se as cotas para negros e pardos são legais, discriminatórias ou não. São legítimas, pois alguma coisa deveria ser feita para resgatar historicamente a situação do negro brasileiro e de seus descendentes. Se é difícil vencer na vida para um branco, imagine então para um negro. Não há como negar. Não é o governo que tem que fazer algo, mas é a sociedade. Marcelino faz a sua parte. Mostra as feridas e elas incomodam muita gente. E vamos cutucar!

Para isso é que serve a literatura. É literatura de nível, forte e ativa, nada de “auto-ajuda” para classe média com crises depressivo-financeiras. Boa literatura tem que trazer à tona temas que devem e precisam ser discutidos, questionados, revistos e sobre os quais o leitor precisa refletir. Os livros de Marcelino ajudam e muito. Só não gosta quem prefere ver o mundo com “vista-grossa”, defendendo “o cada um por si e Deus por todos”. 500 anos de governo de extrema direita branquelo-portuguesa não são fáceis de corrigir.

O livro “Contos Negreiros” foi vencedor do Prêmio Jabuti de 2006. No audiolivro, os contos, que receberam o nome de “cantos”, são narrados pelo próprio Marcelino Freire, que, mais do que ninguém, soube interpretar e dar vida aos seus personagens. Tem a participação da cantora Fabiana Cozza e de Douglas Alonso. Audiolivro de quase uma hora de boa literatura e divertimento garantido. Para branquelos, pardos e, claro, negros do Brasil. Particularmente, destaco os cantos: “Linha de tiro”; “Meu Negro de Estimação” e “Meus Amigos Coloridos”. Boa leitura ou boa audição!

Marcelino Freire nasceu em Sertânia, PE, em 1967. Vive em São Paulo desde 1991. É um dos principais nomes da nova geração de escritores, autor, entre outros, de “Angu de Sangue” (2000) e “BaléRalé” (2003).

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O gato que não sabia de nada. Marcos Fernando Kirst


O livro de estréia de Marcos Fernando Kirst, na ficção, é um livro infanto-juvenil. E aqui abro um parêntesis necessário e importante. Recentemente, lendo uma entrevista com o escritor Nelson de Oliveira, ele dissera que começou a ler muito tarde. Admitira que, se não me engano, foi por volta dos seus 15 ou 16 anos e que, desde então, não parou mais. Quando li a sua declaração, logo me identifiquei, pois eu também comecei a ler por volta da mesma idade, e, a meu ver, aos 16 anos realmente é tarde, muito tarde. Por outro lado, já o escritor Marcelo Mirisola disse que começou a ler aos 25. Claro que nunca é tarde demais para se começar a ler, mas, quando se começa a ler livros muito tarde, um período muito importante na vida de uma pessoa adulta sadia, normal (entenda aquela que tem a leitura como um hábito tão comum como escovar os dentes, ou por que não?, se alimentar) é completamente perdido. Recuperável, mas não como seria se acontecesse na época adequada. Refiro-me à leitura de livros infantis, lidos quando se ainda é criança; ou ler um livro infanto-juvenil na tenra adolescência. A leitura de um livro infantil ou infanto-juvenil por um adulto é diferente. Dependendo do adulto, pode até ser uma leitura mais rica, mas isso é raro e não é o que acontece na maioria das vezes. A visão do adulto “padrão” sofre influências imperceptíveis e costuma ser curta, limitada, podada, fruto de anos de educação castradora pelos inúmeros “pré-conceitos” e “falsas-verdades”, que herdamos e que a sociedade moderna nos impõe. Uma criança acostumada com leitura desde cedo tira muito mais proveito do que lê, pois o livro é apenas uma pequena janela que se abre a exibir um mundo rico, desconhecido, e sem limites para aquele vulcão em erupção, de imaginação e criatividade, que é a mente infantil.

E assim, antes de falar propriamente do livro “O gato que não sabia de nada", quero dizer que meu filho leu o livro antes de mim. Claro que não poderei entrar na impressão que teve do livro, mas acredito que ele tenha tirado muito mais proveito da leitura. O escritor gaúcho Marcos Fernando Kirst nos apresenta uma história “infanto-juvenil” diferente, e por vários aspectos, mas principalmente por dois, os quais destaco. Primeiro, porque a narrativa é feita em primeira pessoa, oops!, digo, em primeira... voz, e uma voz felina. Quem nos conta a história é o gato Bioy, o protagonista. E assim, nós leitores, nos deparamos com o mundo dos “humanos” visto sob a ótica de quem só tem poucos centímetros de altura. E tudo então parecer ser grande demais, como os “bichos-humanos” “bem grandões”; os “monstros-carros” ou “carros-monstros”; “veterinário grandalhão” e sua “mãozona”. Depois, na linguagem que o gato Bioy utiliza para nos contar sua história, como foi adotado e como batizou seus donos de “Sr. Miau” e “Sra. Miaau, com dois ‘as’”; que mora na cidade Miaaau, na rua Miau-Miau, número Miu. Nossa! Algum adulto deve achar difícil entender uma linguagem “felina”, então faça um teste: dê o livro “O gato que não sabia de nada” para uma criança e depois pergunte a ela se ela acha difícil ou complicado. Com certeza dirá, como Bioy : “é bem fácil, e espero todos vocês de patinhas abertas.”

Humm! Parece muito infantil, alguém poderá dizer, talvez monótono demais. Então, o que acham desta divertida passagem: “Eu é que não iria engolir aquilo de jeito nenhum, pois, se era para os tais de vermes, os vermes que engolissem aquilo, eu é que não, pois posso ser gato, macaquinho,vira-lata ou até jornalista, mas verme não sou e, portanto, não engoliria remédio para vermes! Foi tudo isso que eu disse para eles entre meus dentes enquanto eles me forçavam a engolir a pílula, que acabou assustadoramente caindo pela minha goela abaixo, apesar de meus protestos. Urgh! Pfuaf!!! Eca!!!!!” (p. 23).

Ou, então, esta brilhante comparação: “Humanos são assim mesmo, não entendem nada do que a gente diz para eles, mas acham que nós, os bichos, temos a obrigação de fazer aquilo que eles nos dizem. É por isso que nós, gatos, meio revoltados que somos, gostamos mais de fazer aquilo que nos dá na telha, e não somos tão obedientes quanto os tais dos cachorros.” (p. 25).

O próprio protagonista se descreve como sendo: “eu transformado em Bioy, o gatinho-menino, que tem crises de identidade.” (p.25); e mais adiante, numa magnífica passagem, se auto-descobre: “...eu, quando estou ali dentro da sacola, penso que sou um livro. Então é isto: não sei se sou gato, se sou macaquinho, se sou jornalista, se sou verme ou se sou livro. Eu sou um gato que não sabe de nada!” (p. 28).

Mas, então, como confiar na narrativa de quem “não sabe de nada”? E aí é que está um dos pontos positivos da “narrativa em primeira pessoa”, que, embora não seja confiável, lemos e temos a visão de apenas um ponto de vista, que pode ser mentira, verdade, equívoco. Mas, em “Um gato que não sabia de nada”, com certeza, o leitor, seja criança, adolescente ou adulto, além do prazer da leitura, poderá tirar muito proveito para o nosso dia a dia. Ainda mais se for alguém que goste de animais de estimação, seja cão ou gato. Como esta passagem das páginas 28 e 29: “E tem vezes que eles ficam simplesmente encantados quando eu, estando no meio dos dois no sofá da sala, fixo meu olhar naquele aparelho barulhento e cheio de imagens coloridas que mudam o tempo todo, que eles parecem adorar. ‘Veja, amor, o Bioy assiste televisão’, eles comentam... Nada a ver! Fico, na verdade, é meio pasmado por alguns segundos, tentando entender onde está a graça que eles encontram naquilo, mas logo me canso e prefiro voltar aos carinhos deles e fechar meus olhos para sonhar coisas e mundos fantásticos que só a imaginação dos gatos é capaz de criar.”

Bom, meu objetivo aqui, ao falar de “O gato que não sabia de nada”, de Marcos Fernando Kirst, não é o de analisar, mas apenas divulgar um bom livro, e uma ótima dica de leitura. Se não for para um pai de família, que seja para os filhos, melhor seria para ambos, pois é divertimento garantido. Confesso que gosto de ler os livros infantis dos meus filhos. Foi assim com “As frangas” do Caio Fernando Abreu, “Memórias de menina” de Raquel de Queiroz, e outros que me fogem agora . Ler um livro infantil é uma das poucas oportunidades que o adulto tem de, mesmo que por breves momentos, viajar no tempo e voltar a ser criança, nem que seja só na nossa cabeça.

O autor, Marcos Fernando Kirst, nasceu na cidade gaúcha de Ijuí, em 1966. Atualmente mora em Caxias do Sul, RS, atuando como jornalista e escritor. O livro “O gato que não sabia de nada” tem ilustrações da artista plástica Dani Magnabosco. O livro foi publicado em 2008, pela editora Belas-Letras, Caxias do Sul, RS. Marcos também é autor do romance "Dois passos antes da esquina", de 2009.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Idade do Zero. Zeh Gustavo.


O poeta Zeh Gustavo usa e abusa do seu, seu poder criativo, não, melhor dizendo, da sua plena liberdade de criar. Em “Idade do zero”, o exercício da palavra é levado à exaustão, inovando, renovando, explorando. O resultado é uma semântica inédita, invertida, redefinida, para poder extrair do significante algo que nos revele a riqueza dos significados. A língua portuguesa nos permite isso e Zeh Gustavo descobriu um filão. A poesia está aí para quem ousar inovar, para quem tem coragem de buscar algo novo no que parece não ter mais sumo, que parece estar no bagaço. Posso até dizer que Zeh Gustavo é um novo integrante do time, da seleção de novos poetas contemporâneos. Poetas que fogem daquela tradicional monotonia do excesso de sentimentalismo auto-biográfico, daquele vão exercício de complicar o fácil, fazendo joguinho de palavras. Digo que Zeh Gustavo está ao lado dos gaúchos Paulo Scott e Fabrício Carpinejar. A nova ordem é realmente “nova”, criar algo diferente que nos dê ânimo para leitura, fazer uma poesia com características de prosa, mantendo a estética, a estruturação dos versos. Senão, um dia, não haverá leitores jovens que gostem de poesia, apenas aqueles velhos, atrelados ao passado, lendo dodecassílabos com régua digital. Para me fazer mais claro, que tal o próprio Zeh Gustavo:

“Sou mesquinho para com vírgulas./ Elas me idolatram. (...)

A morte me perpassa./ A vida me perpassa igualmente. / Transmito pulgas juntamente/ com letras./ Vai num pacote.” (In “prostituto da palavra”)

“O erro traz as palavras/ de volta ao barro/ onde se constituíram/ todas as linguagens.” (in “máquina de se escrever”)

“Desencontrei quem gostasse demais do que eu/ de improduzir./ Tenho desencanto de grandes feituras.” (in “flexões”)

“Alimento um desejo incessante/ de raciocinar objetos./ Queria fazer interesses/ só de ludismos./ Se os objetos racionalizassem/ sozinhos o mundo/ a gente viraria vagabundo(...) / Os objetos serão muito orgulhosos/ que nem os vegetais e os insetos./ Sabem que atingirão o ponto de raciocinar/ com lógica certa e curta./ E eu restarei, livrinho da silva.” (in “ cientista”)

“I

Teve um dia uma desalguém:

era engenheira.

Gente importante. Gente séria, sisuda de si.

Meio gostosona, moço.

Teve aqui para conserto dos pés.

Seus pés não eram. Pisavam.

Pisavam forte.


II

Teve noutro uma alguém:

era ninguém.

Gente desimportante. Caminhadora.

Bonitona a moça. Meio conforme dizem sem-sal.

Mas bonitona.

Seus pés eram bolhas calos cutículas sangue.

Suas mãos eram sangue.

Ela era sangue e olhos,

Muitos olhos, olhares,

Olhavam forte.

Teve aqui para desconserto de mim.” (in "sapateiro")


Quem prefacia o livro de Zeh Gustavo é Mário Chamie, que esmiúça a poética inovadora de “Idade do zero”: “Um poeta, pois, que, ao entrar em cena, já desenha, à margem de quaisquer mesmices epigonais, o seu ‘desespaço’. Isto é: a ‘casa’ de sua palavra, onde procura reabrigar a linguagem da poesia presidida pelo seu próprio eu: ‘Tenho um grave projeto/ Que é o de construir/ Silêncios./ (...) Sou pedreiro de pratos-feitos./ (...) Não tenho casa mas pretendo voltar a morar lá (in ‘minha casa’).”

Zeh Gustavo é heterônimo do escritor e revisor Gustavo Dumas – autor de “Mito da origem do futebol” (Cone Sul, 1997), “O povo e o populacro” (Cone Sul, 1998) e “Solturas, balões e bolinhas de papel” (Damadá, 2001). Zeh Gustavo é natural do Estado do Rio de Janeiro, também compositor e poeta.

Este livro foi gentilmente cedido pela Editora Escrituras, através do extinto site Leia Livros do Governo do Estado de São Paulo, para resenha (2005).