sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O ovo apunhalado. Caio Fernando Abreu


"O Ovo Apunhalado", de Caio Fernando Abreu, é mais um livro de contos de um escritor que atingiu um grau de maturidade pouco comum na literatura brasileira. O autor inova na temática, na sintaxe e, principalmente, no domínio da linguagem, tornando-a original, num estilo que é só dele. Consegue a difícil proeza de fazer uma ficção em que se misturam a "realidade observada com a fabulação imaginária". Caio Fernando Abreu consegue com incrível habilidade e senso crítico manejar a língua portuguesa numa fluência que lhe é muito peculiar, cujos contos nos causam perplexidade e encantamento, e principalmente nos fazem pensar sobre a nossa realidade. O texto a seguir pertence a este livro. Apenas uma amostra grátis de um trabalho grandioso de um extraordinário escritor:


UMA VESTE PROVAVELMENTE AZUL

"Eu estava ali, sem nenhum plano imediato, quando vi os dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um ninúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças.
" (Página 47)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A ilha no espaço. Osman Lins


Em "A ilha no espaço", Osman Lins nos traz uma trama de crime, suspense e mistério, numa história bem brasileira, intrigante e atual. Descrevendo, num texto vibrante e conciso, o drama dos condôminos de um edifício, onde misteriosamente muitos moradores aparecem mortos.


Osman Lins nos apresenta uma novela moderna de suspense e mistério, que pode estar acontecendo no prédio ao lado do nosso, no bairro vizinho, em algum lugar da nossa cidade. “A ilha no espaço”, embora o nome do livro possa dar impressão equivocada do gênero literário, retrata a vida de personagens comuns e seus problemas do cotidiano. Envolvendo o medo, a insegurança, a inversão de valores e, principalmente, a solidão, as situações são descritas com apurado senso crítico, sem entediar o leitor.


Destaque para a maneira como é descrita a solidão a que é submetida a personagem principal, seus dilemas pessoais e um final surpreendente, num texto que flui naturalmente, prendendo o leitor até o fim. "A ilha no espaço" é um livro pequeno, de poucas páginas, cuja história tem um valor imenso.


Um livro para se ler "num só fôlego". “A ilha no espaço”, apesar do nome, não é uma novela de ficção científica, e sim um nome metafórico.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Máquina Extraviada. José J. Veiga


"A Máquina Extraviada", ou "A Estranha Máquina Extraviada", de José J. Veiga, é mais uma obra de valor de um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos. Um livro de contos que serve de exemplo de texto coeso e enxuto, de linguagem simples e narrativa fluídica.

Seus textos são de leitura recomendada em escolas pelo trato com a língua, sem o academicismo pedagógico. É um autor muito bem recebido pela crítica e pelo público, escrevendo sobre temas íntimos da realidade brasileira, com leve sotaque regional, mas sem excessos. Riqueza e variedade de personagens, com predileção pelos infantis no início da adolescência, em fase de amadurecimento, o que motiva, muitas vezes, finais aparentemente absurdos, todavia comoventes, fantásticos, surpreendentes, que nos levam à reflexão. Apesar de ter sido rotulada, por muitos literatos teórico-tecnicistas, como de realismo mágico ou fantástico, a obra deste grande escritor é rica e muito mais ampla, superando qualquer argumento que tente limitá-la para outros fins que não o deleite de uma boa e satisfativa leitura.

Curiosamente, este livro foi primeiro publicado como "A Estranha Máquina Extraviada", e, posteriormente, como "A Máquina Extraviada". Em razão disso, é possível encontrar o livro com capas e nomes distintos. Mas se trata de uma mesma obra. (Por Ramiro R. Batista)

AVISO AOS NAVEGANTES:

Se sua professora recomendou a leitura deste livro, parabéns a ela, pois é um livro excelente. Tenho recebido muitos e-mails sobre este livro, então vão algumas respostas às muitas perguntas:

- Não há resumo do livro, pois é um livro de contos, os quais não possuem interligação, ou seja, são independentes. Os contos trazem histórias independentes. Quanto ao resumo do conto que deu nome ao livro, acesse "a máquina extraviada", clicando aqui;

- Não há como dizer quais são os personagens do "livro", pois cada conto tem seus próprios personagens;

- Se você gostou do livro, leia outros do José J. Veiga, particularmente os livros "A hora dos ruminantes" e, o melhor de todos, "Sombra de Reis Barbudos".

Boa leitura.

Como e por que ler os Clássicos Universais desde cedo. Ana Maria Machado.


Um livro referencial para quem quer conhecer a importância dos livros clássicos na educação.


Ana Maria Machado faz um verdadeiro passeio didático através da literatura universal, pormenorizando argumentos de textos que vêm encantando gerações de leitores no mundo inteiro. Reúne um elenco de personagens que marcaram a história mundial, num "guia eficiente para a educação literária e sentimental de crianças, jovens e adultos".


Diante da multiplicidade de obras literárias que vêm sendo editadas, o livro de Ana Maria Machado serve de guia seletivo do que há de melhor na literatura brasileira, portuguesa e universal. Recomendado para pais, professores e leitores mais exigentes.

A Incrível Viagem de Shackleton

O montanhista Marcelo Krings, colaborador do Webventure, escreveu abaixo uma resenha do livro “A incrível Viagem de Shackleton”, de Alfred Lansing (Editora José Olímpyo). Uma resenha que merece destaque.

De origem Irlandesa, Shackleton foi um homem como poucos, daqueles que em qualquer situação difícil, se gostaria de ter ao lado. Obstinado, mas não a qualquer preço, Shackleton organizou e comandou a Expedição Imperial Transantártica, que se fez ao mar em agosto de 1914, e a comandou no sucesso, no imprevisto e nas incontáveis dificuldades até o seu derradeiro fim em agosto de 1916.

O objetivo da expedição era ambicioso, porém factível. O pólo sul já tinha sido alcançado por Admunsen e Scott em 1911 e um novo desafio aparecia no horizonte das grandes explorações polares: a travessia completa do Continente Antártico desde o setor africano até o setor australiano, passando pelo pólo sul geográfico. Milhares de quilômetros de glaciares, montanhas, temperaturas extremamente baixas e ventos fortíssimos, tudo isso para ser superado por um punhado de homens em trenós, puxados por cachorros. Este era o desafio de Shackleton!

Infelizmente este objetivo nunca chegou a ser alcançado. Próximo da costa da Antártica, seu navio o Endurance, foi aprisionado por uma banquisa de gelo à qual ficou preso durante mais de 10 meses. Em novembro de 1915, a estrutura do Endurance não resistiu a tremenda pressão dos blocos de gelo circundantes e finalmente afundou.

Ilhados em uma plataforma flutuante de gelo, Shackleton e sua tripulação de 27 homens viajaram de trenó em direção norte até estabeleceram um acampamento sobre uma banquisa em janeiro de 1916. Ao sabor das marés, o bloco de gelo se deslocava vagarosamente no sentido norte. Ali a tripulação do Endurance sobreviveu de seus suprimentos e caçando animais antárticos por um longo período. Muitos acertos foram feitos para preparar as duas pequenas embarcações remanescentes, pois a tripulação sabia que a qualquer momento a banquisa, em sua viagem ao norte, poderia se despedaçar, não oferecendo mais abrigo a eles.

Aos poucos, o banco de gelo foi se reduzindo e em abril de 1916 não havia outra alternativa que se lançar ao mar. Os cálculos de navegação indicavam a proximidade de terra, a Ilha Elefante, a poucos dias de navegação. Assim por quase duas semanas, as pequenas embarcações foram sacudidas pelo tempestuoso mar no Estreito de Bransfield, até finalmente chegarem a Ilha Elefante.

Aportaram no que se chama hoje a Praia do Náufragos, porém era sabido que nesta ilha não havia, como não há hoje, pessoas vivendo que pudessem ajudar os náufragos do Endurance. Ao menos era terra firme e ali poderiam recompor suas forças, caçar e se abrigar para prosseguir na tentativa de atingir algum ponto povoado do hemisfério sul. Em poucos dias uma expedição composta por Shackleton e mais dois homens se fez novamente ao mar, na sua pequena baleeira a vela para tentar seguir rumo as ilhas Georgia do Sul, de onde tinham partido dois anos atrás.

A viagem durou pouco mais de 6 semanas, praticamente todo o trajeto foi feito sobre um tempo terrível, os três navegantes dormiam e acordavam gelados e molhados, passando por todo tipo de dificuldade até finalmente atingir a Geórgia do Sul em maio de 1916. Uma vez na ilha sabiam que estavam do lado errado, mas não havia como retornar para o mar, seu barco acabara de perder o leme. Não havia outra saída senão empreender uma inédita travessia de uma ilha sub antártica, por entre montanhas e geleiras até o porto de Grytviken.

Os habitantes do porto os tinham como mortos ou desaparecidos e foi com espanto que receberam aqueles homens barbados, sujos, desnutridos e que não trocavam suas roupas há muitos meses. Em pouco tempo várias tentativas de resgate foram organizadas para retirar os náufragos do Endurance que ainda permaneciam na Ilha Elefante. Finalmente no dia 30 de agosto um rebocador chileno, com Shackleton a bordo, conseguiu se aproximar da ilha e retirar todos os homens em segurança.
Nesta incrível e verdadeira aventura, embora o objetivo inicial não tenha sido atingido, um outro, surgido através das circunstâncias impostas pela natureza selvagem, foi alcançado. Todos os homens da tripulação foram resgatados e retornaram para seus lares sãos e salvos. Muito desta façanha se deve a liderança de Shackleton e ao fascínio que seus homens tinham por ele, confiando sua sobrevivência ao discernimento, bom julgamento e a experiência de um verdadeiro líder.

Marcelo Krings (copyright), colaborador do Webventure, é montanhista desde 1989. Foi presidente do Clube Alpino Paulista nos anos de 1998, 1999 e início de 2000. Participou de várias expedições para a cordilheira dos Andes, entre elas de 4 expedições científicas para a Antártica. Atualmente é conselheiro do CAP e sócio da Uggi Educação Ambiental e Australis Turismo.

Retirado do site Webventure.
http://www.webventure.com.br/home/conteudo/noticias/index/id/3422

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Oculta - Uma sentença masculina. Eliana de Freitas


Em seu romance de estréia, Eliana de Freitas nos apresenta uma história de mistério, a meu ver, atual e contemporânea, cujo erotismo presente, às vezes sensual e romântico, e, em outras, exacerbado e cru, se faz necessário, obrigatoriamente, para o desenrolar da trama. É claro que não faltam outros ingredientes básicos para uma história muito bem contada, como amor, paixão, conflitos, aventura e muita ação. Num ambiente bem brasileiro, alternando-se entre as cidades de São Paulo, Brasília e Manaus, o romance expõe o relacionamento estranho e confuso, possível, mas não comum, entre Torquato Nanini, um jornalista, e Hanna Satierfiewski, uma socióloga.

De forma leve, fluida e moderna, rica em pontos que nos prendem ao presente, ao dia-a-dia de grandes centros urbanos, como “internet”, salas de bate-papo, e casas de “swing”, a narrativa de “Oculta”, embora comece sendo apresentada em terceira pessoa, transcorre predominantemente em primeira pessoa, sob a ótica de um só personagem, o protagonista Torquato Nanini. E como é característico desse tipo de narrativa, a história se mostra um pouco tendenciosa e bastante comprometida, levando o leitor a testemunhar e crer em apenas um ponto de vista da trama. Portanto, a leitura de “Oculta – Uma sentença masculina” requer do leitor não só muita atenção, mas também um certo cuidado, equilíbrio e precaução. Todavia, é, com certeza, uma leitura capaz de não deixar leitores insatisfeitos, muito menos aos curiosos e mais perceptivos ao novo e ousado.

O leitor desatento, em narrativas em primeira pessoa, é comumente levado a fazer conclusões que podem estar totalmente equivocadas. A “sentença masculina” nos é apresentada através do protagonista, o qual nos induz a uma conclusão, que, evidentemente, pode não ser a única, nem tampouco a conclusão certa. Num final surpreendente, a história de “Oculta” se mantém aberta, induzindo o leitor a tirar suas próprias conclusões, com uma participação mais ativa, ou simplesmente associar-se ao entendimento, aparentemente equivocado, do protagonista.

Em que pese a possibilidade de um romance desta magnitude ficar estigmatizado pelas cenas picantes de um erotismo ousado e vivo, o romance de Eliana de Freitas nos revela o talento e a maturidade de uma jovem e promissora escritora. Um dos seus méritos, com certeza, foi a capacidade de conduzir a trama sem entediar o leitor, utilizando com maestria o recurso de uma temática masculinizada, taxada de vulgar e relevada à subliteratura por preconceito, o erótico. Um outro grande mérito foi a forma como foi estruturado o romance, vindo à tona o grau de criatividade e sensibilidade feminina de Eliana de Freitas, capaz de inverter a ótica comum, fazendo com que o leitor observasse todo o enredo de um único ângulo, o masculino de um dos personagens.

O final, em aberto e dinâmico, característico de muitos romances de mistério atuais, como muitos seriados norte-americanos, merece destaque especial, pois dá ao leitor aquele “gostinho de quero mais”, ou “como será o próximo capítulo?”.

O livro “Oculta – Uma sentença masculina” foi gentilmente cedido pela autora. Foi publicado em 2006 pela Editora Limiar. E para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a autora e sua obra:
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=18991 -


(By Ramiro R. Batista)

sábado, 24 de outubro de 2009

1. De Gonçalo M. Tavares


Gonçalo M. Tavares é um “possuído”, como disse o poeta gaúch
o Fabrício Carpinejar, ao prefaciar a edição brasileira de “1” (em algarismo mesmo), pois este fenômeno literário português escreve como se não fosse um só. E escreve magnífica e prolificamente (14 livros em três anos), além de um estranho costume de numerar seus livros, organizando-os em séries e linhas.

Batizado de 1, este livro é sua primeira obra lançada no Brasil, no qual Gonçalo M. Tavares nos mostra “seu lirismo armado sobre imagens naturais e concretas enquanto assobia por meio de seus versos uma melodia ao mesmo tempo peculiar, desconcertante e reveladora” *.

Neste livro do escritor português estão reunidos oito livros de poemas, assim denominados, como se fossem capítulos: Observações; Livro dos ossos; Atenas e a metafísica; Frio no Alaska; Homenagem; Explicações científicas e outros poemas; Autobiografia; e Livro das investigações claras. São exatamente 217 páginas de puro deleite, viagem a “universos paralelos” e “retratos da frágil condição humana e da natureza bruta”, conforme os comentários de Carpinejar e José Mario Silva, respectivamente.

Em Gonçalo M. Tavares não há nada da poesia tradicional, com seus excessos, seja de “sentimentos derramados, autobiográficos, egos inflamados ou confidências de um diário”. Há, isso sim, o novo, moderno, atual, por muitos denominada de “ficção poética”, capaz de ter história e enredo. Seguindo o raciocínio de que “poesia não é um crime premeditado, em que o escritor forja álibis e procura esconder as pistas” (Carpinejar). Senão, vejamos:

“Uma senhora, quarenta anos de rosto e trinta de biologia.”

“A digestão é a ação mais excitante de um solitário.”

“A mulher hesita entre o adultério e uma conversa.”

“Não é possível atirar água à matemática.”

“Quanto ao Verão: esse período nefasto e quente/ Não apresenta qualquer talento/ para a chuva, diga-se./ Como o mudo que se concentra excessivamente/ Para proferir um assobio magrinho/ E acaba por tropeçar de maneira desastrada,/ Caindo de uma altura/ Desagradável,/ E falecendo. O Verão, de facto,/ Seria insuportável, não fosse/ O futuro e a cerveja.”

Gonçalo M. Tavares é português, natural de Angola, nascido em Agosto de 1970. O seu primeiro livro de poesia foi “Livro da Dança”, publicado em 2001 em Portugal.

Este livro é de 2005, editado no Brasil pela Editora Bertrand Brasil Ltda.

(*) - vide o endereço http://www.planetanews.com/produto/L/65953.

Inês é morta. Roberto Drummond


Com "Inês é morta", de Roberto Drummond o leitor faz uma verdadeira viagem aos sombrios e cinzentos anos da ditadura militar no Brasil. Sob uma incomum narrativa em 2ª pessoa do singular, a vida de um medíocre ator mineiro desempregado é antecipada por uma vidente. Prevendo e analisando os dilemas, os conflitos, as fraquezas de um ator mal sucedido e desempregado que se vê condenado a se passar como dublê de um ditador. Roberto Drummond, com um excepcional domínio da técnica literária, apresenta a vida de Jonas Santiago, um mineiro forçado a se transformar num militar gaúcho, num misto de Médice, Geisel e Figueiredo. Utilizando vários recursos, o autor disseca e expõe visceralmente o lado oculto da ditadura militar no Brasil, para que tamanha barbárie não caia no esquecimento. Para um povo com memória curta, os vinte anos de ditadura militar revelam o extremo da ausência de direitos, onde os piores absurdos foram cometidos sob o jugo do medo, fruto de quem agia sob o domínio da ignorância e da desinformação. Sem ser maçante, o romance vai da tragédia ao hilário, com doses comedidas de lirismo e saudosismo. Uma verdadeira aula de história do Brasil contemporâneo. Contrastando hábitos mineiros, gaúchos, música, arte, futebol, tradições, o autor nos exibe a grandeza e a riqueza do Brasil como nação. E que os 20 anos de ditadura militar sejam sempre lembrados como a pior experiência política que já tivemos, esperando que jamais venha a se repetir. Autor de "Sangue de Coca-Cola", "Hilda Furacão" e "Quando fui morto em Cuba", Roberto Drummond sempre foi um inovador, um escritor de vanguarda, criando bases de uma nova literatura. Que bom que o Brasil teve Roberto Drummond para nos avivar a memória, lembrando-nos de que não devemos esquecer dos anos 70.

Roberto Drummond faleceu em 2002, aos 68 anos.

"Inês é morta" foi editado pela Geração Editorial, São Paulo, em 2002, 5ª ed.

Vitrola dos Ausentes. Paulo Ribeiro


Responda você que gosta muito de ler e acha que já leu de tudo um pouco. É possível fazer uma "obra" literária, romanceada, sem enredo, sem personagens principais e com texto com supressão total de conetivos? Pergunta difícil, mas Paulo Ribeiro conseguiu. E de maneira, a meu ver, inédita e surpreendente.

Paulo Ribeiro é gaúcho de Bom Jesus, Doutor em Letras, e conseguiu fazer em "Vitrola dos Ausentes" uma obra "sui generis", só com personagens "figurantes". São pessoas comuns do povo, de cidade pequena, com sua linguagem, embora simplória e cheia de vícios, compreensível. O autor traz para a "Literatura" aquilo que é sempre esquecido e omitido por preconceito de muitos autores, muitas vezes por equívoco, por acharem tratar-se de coisa menor, sem valor, cheia de "erros" de português.

Na sintaxe, Paulo Ribeiro recorre ao uso predominante de frases com oração simples, de apenas um verbo, como a linguagem de gente simples. Pessoalmente, acho que "Vitrola dos Ausentes" não é uma obra para qualquer leitor. Para ler, entender e se manter fiel à linha da narrativa, o leitor precisa de atenção redobrada às frases aparentemente soltas, pois freqüentemente se ligam a uma anterior.

"Vitrola dos Ausentes" eterniza detalhes e traz um passado esquecido, mas ainda vivo na memória de muita gente: "pomada Minâncora"; "Falta Kissme e Hollywood sem filtro ao lado das carteiras de Continental"; "Jeep"; "Kombi das Freira" (sem o "s"); "caminhão GMC"; "barulho de lambreta"; e "Vitrola" (que é ainda anterior ao toca-discos, precursor dos modernos "cd-players").

Sem o regionalismo tradicional, Paulo Ribeiro retrata a linguagem popular das pessoas simples do sul do país. Termos muito populares, mas raramente lembrados, como: "balõezinhos = embaixadinhas"; "patente = latrina"; "bidê = criado-mudo". E expressões mais comuns ainda: "As bolhinhas iam tudo voando."; e "Estragando tudo os pano dos vestidinho."

Para o leitor, como um alerta, vai um breve comentário de Luís Augusto Fischer que apresenta a obra: "... Para acompanhar esta "Vitrola", só tem um jeito: é aceitar o risco de seguir a perspectiva do texto, que é estreita e dá uma sensação de sufocamento...". Para mim, ainda vale comentar que o grande mérito de "Vitrola dos Ausentes" está na ousadia da inovação, do experimento bem sucedido. Paulo Ribeiro repete o êxito semelhante a outros grandes escritores brasileiros contemporâneos como Sérgio Sant'Anna e Ricardo Ramos.

"Vitrola dos Ausentes" foi publicada primeiramente em 1993, e reeditada em 2005 agora pela Ateliê Editorial. (Ramiro R. Batista)

Contos da Alma. De Alma Welt


“Contos da Alma” é um livro composto por 13 magníficos contos, capazes de transportar o leitor em uma viagem num universo mágico, encantador, repleto de surpresas, que só uma escritora de muito talento e sensibilidade, como Alma Welt, conseguiria.

Em “Contos da Alma”, o tempo narrativo parece não se situar numa época definida. Contos narrados em forma de “memórias”, que poderiam ter se passado há alguns anos, ou décadas, ou há mais de cem anos, não fossem algumas palavras contemporâneas que prendem o leitor ao nosso tempo, como “CD”, “interfone”, um carro “Mercedes”, “e-mail” e “apê”. Talvez seja esta característica de atemporalidade que dê no leitor a impressão de estar lendo um livro “antigo”.

E, de certa forma, qualifico isso, como mais uma riqueza da prosa de Alma Welt, que conduz o leitor numa espécie de “viagem no tempo”, num texto muito rico, com uma linguagem de leve erudição, sem aqueles excessos típicos dos livros de época, como os do Romantismo e do Realismo.

Em “Contos da Alma”, através de narrativas histórico-memorialistas, a personagem “Alma” relembra episódios da sua vida. Essas narrativas possuem fortes características de período literário, principalmente do que os estudiosos denominaram de Romantismo. A personagem “Alma” (creio que a autora também o seja) e as demais mulheres, como “Aline”, do conto homônimo, por exemplo, são belas, física e psicologicamente, bem retratas em suas características e que as qualificariam com figuras femininas idealizadas, típicas do período literário a que me referi.

O “gosto pelo noturno”, também, de forma harmônica com o mistério, como em “A Harpia”, é bem do gosto dos românticos e dos “romantistas” de época. A “função sacralizadora da arte” está bem delineada pela própria personagem “Alma”, artista plástica e poeta. E é através de suas experiências como tal que a maioria das histórias é narrada, e sente-se a relevância da arte tanto para a personagem quanto para o enredo.

Há, também, a “ânsia de glória” para o artista. Aparecendo em quase todos os contos, pois “Alma”, mais que outros personagens, quer se ver reconhecida e admirada. E consegue, fácil e brilhantemente. Há, na personagem “Alma”, e provavelmente na própria autora, o “sentimentalismo” típico. Alma (personagem e autora) é artista e poetisa, e sua poesia traz muito do “seu eu, do seu amor, da sua paixão.” O amor está presente em quase todos os contos, mais que qualquer outro sentimento, manifestando-se em extremos, com fortes e bem descritas cenas de erotismo, aparentemente beirando à libertinagem, mas sempre caracterizando o amor, como algo maior, sobreposto à mera satisfação carnal.

A idéia de memória, lembrança e de retorno ao passado é também típico dos românticos. Tal retorno dá origem a diversas manifestações: como o saudosismo voltado para a própria infância, o passado individual, exemplificado no maravilhoso conto “As férias da infância da Alma” (p. 97).

Numa visão de mundo muito pessoal, interior, os sentimentos da autora Alma Welt, com incidência da provável veracidade dos contos, quando narrados em primeira pessoa (característico da metalinguagem), se fazem como o espaço central da criação. Com uma liberdade plena em seu ato de criar, Alma Welt é uma artista romântica típica, sem dúvida alguma, e não se acanha em expor suas emoções pessoais, em fazer delas a temática sempre retomada em sua obra.

Como um texto memorialista característico, muito influenciado pelo perfil idealista da autora (suponho), a crítica social existente é indireta ou quase inexistente nos contos. Intencional, provavelmente, a supressão de mazelas sociais se dá por motivos estudados. Muitas delas, praticamente irrelevantes ao enredo e à lembrança, exceto num momento quase que isolado, através do personagem do menino “Jonas”, no conto “Meu pequeno vizinho”, p. 23.

O erotismo no mágico imaginário de Alma Welt é quase “velado”. O amor e sexo são retratados de forma sublime, sem o intuito de excitação carnal. Não há vulgaridade no erotismo descrito pela autora. Amor e sexo se confundem em certos momentos, para criar uma aura de erotismo legítimo e puro, sem preconceito ou distorções. A heterossexualidade e a homossexualidade são descritas com tamanha naturalidade e encanto que as vemos como algo singelo, inocente e cotidiano, numa espécie de visão holística, ou paradisíaca.

Estendi-me na resenha do livro “Contos da Alma” por razões pessoais. Um livro como este merece estar à disposição do público leitor nas melhores livrarias. Obra importante de uma escritora madura e consciente do valor da sua produção. Para quem já se encanta com os textos publicados nos “sites”, irá se maravilhar ao ler uma obra inteira deste fenômeno literário chamado “Alma Welt".

O livro “Contos da Alma” foi gentilmente cedido pela autora. Lançado pela Editora Palavras e Gestos EPG Ltda, publicada em 2004.

P.S.: Segundo informações de sua irmã, Lúcia, a grande escritora e poetisa gaúcha Alma Welt faleceu em 20 de janeiro de 2007.

O tesouro da casa velha. Cora Coralina


A leitura dessas "histórias de Cora Coralina" é uma verdadeira viagem ao passado. Um passado esquecido pelos livros e escritores do final do século XIX e início do século XX. Histórias que retratam a preocupação da autora pelos "humilhados e ofendidos", os "oprimidos e deserdados", e personagens marginalizados por uma "sociedade capitalista e feroz". Tudo em narrativas de leitura instrutiva, fácil, digestiva, numa linguagem simples, poucos termos regionais, sem o rebuscado e o formalismo de romantistas e realistas de época.

Um testemunho comovente da educação de um jovem sob a opressão da palmatória, com um final surpreendente. Um retrato divertido e hilariante sobre excesso de cuidados em se guardar coisas fora do alcance das crianças. Quanto pode ser a dedicação e o respeito de uma escrava para com seu senhorio? Existe realmente alguma maldição em se achar um tesouro e não compartilhar com alguém?

Temas como esses são abordados nos 18 "contos" inéditos da escritora goiana. Obra póstuma de uma escritora que se tornou um mito na literatura nacional. Apesar de escrever desde os 20 anos, só conseguiu publicar seu primeiro livro aos 76 anos, em 1967. Talento reconhecido por escritores renomados como Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado.

Cora Coralina era conhecida como exímia doceira, bem antes do reconhecimento como poeta e escritora. Este "O tesouro da casa velha" foi publicado para comemorar os 100 anos do seu nascimento, em 1989, aniversariando junto com a proclamação da República.

Cora Coralina faleceu em 1985, prestes a completar 96 anos. Além desta obra póstuma, conseguiu publicar as seguintes: "Estórias da casa velha da ponte"; "Poemas dos becos de Goiás e estórias mais"; "Os meninos verdes"; "O meu livro de cordel"; e "Cora coragem, Cora poesia".

É de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, Cora Coralina, as seguintes frases, que merecem destaque:

"a língua é móvel, os gramáticos é que a querem estática, solene, rígida. Só o povo a faz renovada e corrente"

"o alimento de quem escreve é a leitura de bons autores, com sentimento só você não tem estilo".

A Hora dos Ruminantes. José J. Veiga


"A Hora dos Ruminantes", de José J. Veiga, é mais um livro surpreendente deste genial escritor, cuja tematíca abordada é a condição humana e sua reação diante das mudanças, repentinas, drásticas, inexplicáveis. Não se sabe propriamente o que José J. Veiga escreveu: um romance ou um apólogo? Em "A Hora dos Ruminantes", o autor retrata, numa verdadeira "fábula moderna", a estória de Manarairema, uma pacata cidade de interior cuja rotina dos seus habitantes é quebrada por acontecimentos inexplicáveis. Primeiro, a chegada de homens estranhos, sisudos e inflexíveis; depois, uma invasão de cães que infestam a cidade por vários dias; e, por último, os bois, centenas, talvez milhares, por todos os cantos, ruas, casas, plantações, rios e cuja presença parece que nunca terá fim. Numa abordagem inédita, José J. Veiga nos apresenta um enredo instigante em que se analisa o comportamento humano diante da opressão e da violência; das mudanças repentinas; do inusitado e do incompreensível. José J. Veiga (1915-1999) era goiano, nascido em uma fazenda próxima de Corumbá de Goiás, uma pequena vila a 150 quilômetros de Goiânia. Seu nome literário teve o acréscimo de “J.” (sem significação própria), por sugestão do então amigo Guimarães Rosa que, com argumentos numerológicos e estilísticos, sugeriu José J. Veiga, quando da publicação do livro de estréia "Os Cavalinhos de Platiplanto", em 1959. "A Hora dos Ruminantes" foi publicado em 1966. Com esta obra, José J. Veiga compôs "um dos mais belos livros da nova ficção brasileira". Livro que, desde o seu lançamento, já foi traduzido para vários países. São também do autor: "Sombras de Reis Barbudos", "A Máquina Extraviada", "Objetos Turbulentos", "De Jogos e Festas", "A Usina Atrás do Morro", "Aquele Mundo de Vasabarros" e "Os Pecados da Tribo", entre outros.

P.S.: José J. Veiga teve que penar muito para conseguir publicar seu primeiro livro, "Os Cavalinhos de Platiplanto", só conseguindo em 1959, aos 44 anos. Nestes 50 anos que se passaram desde então, quase nada mudou para os escritores de um país de poucos leitores. (Por Ramiro R. Batista)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Cadeiras Proibidas. Ignácio de Loyola Brandão


Retratos de um mundo caótico e repleto de contradições, não muito diferente do nosso. Inspiradíssimo, Loyola Brandão nos presenteia com 24 contos, por vezes instigantes, em outras sombrios e depressivos, porém com toques divertidos e até hilariantes, sempre com o seu excepcional domínio da narrativa.

Com apurado senso crítico, envolve o leitor em situações aparentemente absurdas, mas sempre presas ao real por pequenos e delicados fios, revelando a situação humana e sua fragilidade perante um mundo cruel criado e desenvolvido inconscientemente para sua autodestruição.

Policiais cumprindo ordens absurdas, apreendendo uma cadeira de fórmica. Homens transformando-se em barbantes. O que pode acontecer quando a orelha de um homem começa a crescer sem parar? Um homem que resolveu só contar mentiras. Um outro que dissolvia xícaras. Com temas assim, o escritor paulista exibe com maestria situações que nos fazem repensar a vida e nosso cotidiano.

Textos escritos durante o regime militar, publicados em colunas de jornais de grande circulação, tem no conto que dá nome ao livro um enredo de aparência surreal, mas muito vivo ainda na memória de muitos brasileiros, testemunhas da opressão dos anos de chumbo vividos no Brasil durante a década de 70.(Ramiro R Batista)

A timidez do monstro. Paulo Scott


O livro “A timidez do monstro”, de Paulo Scott, apresenta mais um representante de uma nova geração de escritores, cuja produção literária se mostra inovadora, incomum, diferenciada e, ao mesmo tempo, rica. A poética de Paulo Scott beira o inclassificável, algo intermediário entre a poesia, a prosa-poética e prosa. Os textos de Paulo Scott são poesias com enredo, instigantes e perturbadores. Este escritor gaúcho não produz apenas ficção, cria palavras, verbos (“minusculam a oração na boca” ou “sonhei que discotecava na sala”), ou conjuga o impossível (“os dedos engolem/ a sombra da infância”) e nos faz lembrar o saudoso Quintana em “ajeito teu sim/ com os polegares/ frito-os aos gritinhos”. E Paulo Scott atinge a genialidade, a meu ver, em:

“hoje fui atacado por uma dessas aranhas-gota
são animaizinhos que se alimentam da respiração humana
descem pelos azulejos, aí saltam, picam no pescoço
(geralmente atacam em dupla)
e sobem rápidas para o couro cabeludo,
a vítima tem menos de um minuto
para se ajeitar na posição horizontal,
é a única forma de aplacar a dor
que se alastrará pelos globos oculares,
procurá-las é inútil, desista, elas cavalgarão na sua cabeça,
a paralisia durará meia hora,
você não adivinha a saudade que me veio
quando o efeito do veneno passou”
(in “Ainda o movimento para o primeiro amor”, p.77)

Ou o máximo da criatividade em:
“piso na areia, percebo o bilhete laranja espetado no graveto
seco, “escolha uma dia de verão em que a água esteja muito
fria, aguarde até que uma menina (dessas com menos de
nove anos, com os ossos ainda tenros) entre no mar, sem
que haja alguém por perto, e, sem desvestir as roupas, entre
no mar também e a carregue pela cintura, nadando rápido
até os dois desfalecerem; ela se tornará sereia”, dobro o
bilhete e o enfio no bolso, evito encarar o oceano, algo
me aguarda nas espumas da rebentação
(in “Roteiro básico para fabricar sereias”, p. 103)

Paulo Scott é outro escritor referendado pelo poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, que assina o prefácio de apresentação da obra, e esclarece: “Em uma poética moderna e fraturada, Scott reúne o que antes alimentava poetas católicos como Jorge de Lima e Murilo Mendes ou ateus como Jim Morrison e Rimbaud: evidência e violência...” (p. 9).

O livro “A timidez do monstro” reúne textos produzidos pelo autor de agosto de 2003 a janeiro de 2005. Edição de 2005. Cortesia da Editora Objetiva Ltda. (Ramiro R Batista)

Pedras de Calcutá. Caio Fernando Abreu


“Pedras de Calcutá” é a terceira coletânea de contos do escritor e dramaturgo gaúcho Caio Fernando Abreu. Publicada, pela primeira vez, em 1977, quando então o escritor tinha 28 anos, revelando, mais uma vez, um grau de maturidade raramente encontrado na Literatura. Através de contos de narrativa curta, uma preferência do autor, tornam-se incontestáveis a sua versatilidade e a sua genialidade. O escritor gaúcho, depois de “O inventário do irremediável” (1970) e “O ovo apunhalado” (1975), traz, em “Pedras de Calcutá”, 19 contos, com uma surpreendente e diversificada temática, com riqueza de estilos e crítica social discreta, mas contundente. Os textos apresentam temas que variam desde narrativas densas, intimistas e psicológicas (in “Mergulho I” e “Mergulho II”); passando pelo gênero fantástico e o suspense (in “O inimigo secreto”); pelo histórico e memorialista (in “Recuedos de Ypacaray”); sem esquecer de uma marca pessoal do autor (a ousadia e inovação), seja na sintaxe, com frases longas com ausência de pontuação, ou com textos em três idiomas simultâneos (português, espanhol e inglês), sem perder o compreensível (in “A verdadeira estória de Sally can dance (in the kids)”). Pessoalmente, merecem um destaque especial os seguintes contos, além dos já mencionados, capazes de fazer o leitor tirar os olhos do livro para uma pequena pausa reflexiva: – “Ele escreveu mesmo isso?” – como nos comoventes “Uma história de borboletas” e “O poço”, além do profundo e complexo conto que dá nome à coletânea “Pedras de Calcutá”. “Pedras de Calcutá” foi e continua sendo, dos livros de autor, o preferido pela crítica, embora o público ainda prefira “Morangos Mofados” ( de 1982). Sobre “Pedras de Calcutá”, o próprio autor diz que o livro “é, na sua quase totalidade, um livro de horror”, “principalmente (mas não unicamente) da minha geração.” “Pedras de Calcutá” marca, de certa forma, conforme a apresentação da edição de 1996, o final “de uma trajetória pessoal de independência em relação ao estado natal (Caio ampliara sua carreira jornalística para São Paulo e Rio de Janeiro), ao país (vinha de um período de três anos de auto-exílio em Londres, Estocolmo e Amsterdã) e afirmação de liberdade pessoal e não-submissão ao arbítrio do regime militar.” O escritor e dramaturgo gaúcho Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago, em 1948, e faleceu em Porto Alegre, em 1996. “Tem doze livros publicados no Brasil e várias traduções na França, Inglaterra, Alemanha e Holanda. Em 1994, seu romance – “Onde andará Dulce Veiga?” – foi um dos seis finalistas do prêmio Laura Battaglion para o melhor romance estrangeiro na França.” Esta edição de “Pedras de Calcutá” é de 1996, publicada pela Editora Companhia das Letras. (Ramiro R Batista)

Sombras de Reis Barbudos. José J. Veiga



Em "Sombras de Reis Barbudos", José J. Veiga trouxe ao público um livro capaz de mexer com o íntimo do leitor, fazendo-o refletir sobre os principais valores do ser humano. O autor, numa história de linhas simples e direta, retrata o extremo da opressão de um povo, submetido às piores restrições e desatinos emanados por uma empresa local, numa pequena cidade de interior. 

A poderosa "Companhia" impõe absurdas e incompreensíveis regras de conduta e comportamento, levando as pessoas ao pânico e ao medo, desencadeando um clima de terror e desconfiança. Ninguém pode mais viver, amar e sonhar livremente. Quando todos pensam que não há mais esperança, descobrem que a mudança está numa estranha capacidade que todos os moradores possuem. A qual é sinônimo de liberdade.

Para descobrir o que aconteceu, emocionar-se e saber seu comovente final, só mesmo, deixando-se levar pelo raro talento de Veiga, lendo "Sombras de Reis Barbudos". Uma obra que supera tempo e lugar, um verdadeiro clássico universal. O livro recebeu Menção Honrosa no Prêmio Nacional de Ficção de 1973 e fez parte do Programa Governamental "Salas de Leitura das Bibliotecas Escolares", da FAE/INL. (Ramiro R Batista)


"Quando o mágico dialoga com o fantástico

Por ANTONIO ROBERTO FAVA
 
Gregório Foganholi Dantas: universo de Veiga era fundamento na construção do insólitoEstá bem, mãe. Vou fazer a sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu aqui desde a chegada do tio Baltazar”. Assim começa o romance Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga (1915-1999), objeto principal da dissertação de mestrado de Gregório Foganholi Dantas, O Insólito na Ficção de José J. Veiga, apresentada recentemente junto ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. As pesquisas de Gregório foram financiadas pela Fapesp. 


Embora Veiga seja considerado por boa parte da crítica um “escritor fantástico”, os estudos de Gregório, sob orientação da professora Vilma Arêas, concluem que essa definição é, no mínimo, inadequada e inconsistente, como tem aparecido em antologias ou panoramas da ficção brasileira nos últimos 50 anos. “O que acontece de fato é que J.J. Veiga mantém um estreito diálogo com esses dois gêneros: o fantástico e o realismo mágico, pois é um escritor cujos textos apresentam elementos tanto de um quanto de outro gênero”, avalia Gregório. Veiga criou um universo coeso, fundamentado na mesma premissa da construção do insólito, mas rico em suas variadas manifestações e representação de variados conflitos: ingenuidade versus reflexão, liberdade versus opressão, criança versus adulto, e campo versus modernidade.


Autor pouco estudado – o que não quer dizer que não tenha sido bastante lido –, pode-se concluir, em primeiro lugar, “a inegável condição de Veiga como um dos pioneiros do fantástico no País”, que provoca divergentes leituras por parte de uma crítica ainda desacostumada a essa ficção no Brasil. Em segundo lugar, o vínculo inevitável não apenas de Veiga, mas de todo o chamado boom da ficção nacional das décadas de 60 e 70 — notadamente do conto, com a ficção hispano-americana —, favoreceu a acomodação de sua obra sob o rótulo de “realismo mágico”.


Para Gregório, o termo fantástico é uma expressão usada principalmente para se referir aos escritores dos séculos 18 e 19, que começam a escrever histórias de terror, como Edgar Alan Poe, Hoffmann, Bram Stocker e Mary Shelley, que escreveu Frankenstein. Nesse tipo de literatura, segundo Gregório, havia sempre a hesitação entre o que é e o que não é fantástico. Principalmente no que se refere à figura do fantasma, colocando o leitor em dúvida – será que existe o sobrenatural ou não. 


No realismo mágico latino-americano, já no século 20, não existe esse tipo de questionamento, quando o sobrenatural aparece mais integrado à realidade. Um exemplo: Gabriel Garcia Márquez, com o seu Cem Anos de Solidão. Veiga escreveu 15 livros. Todos eles possuem uma boa dose que se denomina fantástico. Na maioria de suas obras, verifica-se a existência de alguns elementos, histórias e enredos que se repetem, “a recorrência de determinados tipos de personagens – principalmente infantis – e a repetição do mesmo ponto-de-vista narrativo”.

Fábula ou parábola, Sombras de Reis Barbudos é, de acordo com Gregório, uma opressiva história de terror e tensão. Ela é contada sob a ótica de uma criança, Lucas, que descreve as coisas absurdas como os feitos da “Companhia” que se instala na cidade, as proibições impostas, a invasão de urubus e, no final, as pessoas começando a voar. “Voar significa a forma libertadora das pessoas para fugir da opressão. Ou será que é apenas o modo de fugir do problema sem resolução? Ninguém pode mais viver livre, amar e sonhar”, diz Gregório. O livro propõe mais perguntas do que respostas, conclui o pesquisador. " (fonte: Jornal da Unicamp)